‘Cidadão que sabe que está acontecendo um crime tem a obrigação de fazer algo’, diz promotora
(O Globo, 24/03/2019 – acesse no site de origem)
Pelo menos oito telefonemas à Polícia Militar antecederam a morte de Daniela Eduarda Alves, assassinada a facadas pelo marido, em Fazenda Rio Grande, na região metropolitana de Curitiba. Eram vizinhos que ligaram insistentemente para o serviço de emergência, pedindo que uma viatura fosse até a casa do casal, por causa do barulho das agressões. Mas o “socorro” chegou tarde. Daniela já estava morta havia 40 minutos.
“Solicitações de outras ocorrências” foi a justificativa dada pela polícia para a demora no atendimento ao caso, registrado há pouco mais de uma semana e que terminou com a prisão do autor, Emerson Bezerra da Silva. Como se não bastasse, uma fala do tenente-coronel da PM Manoel Jorge dos Santos Neto à TV causou perplexidade. “Se o marido mata a esposa, infelizmente é uma questão familiar que daí se torna um crime”, disse.
O descaso na proteção da vítima e na fala do policial descortina uma máxima que precisa ser urgentemente revista em nossa sociedade: “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Segundo a promotora de Justiça no Ministério Público do Estado de São Paulo Gabriela Manssur, especialista em casos de violência contra a mulher, os vizinhos de Daniela fizeram o correto.
— Violência doméstica não é briga de marido e mulher. É crime. O cidadão que sabe que está acontecendo um crime tem a obrigação de fazer algo — diz ela, ponderando que muitas pessoas deixam de denunciar porque acham que é um fato isolado ou que o casal pode reatar. — Mas isso não é um problema nosso. Vizinhos, colegas de trabalho e amigos podem ser verdadeiros anjos da guarda. Muitas vezes, são essas pessoas que denunciam, já que as vítimas estão vulneráveis.
Foi graças a essa interferência que a consultora de beleza Kamila Oliveira, de 30 anos, conseguiu se livrar de um ex-marido que a agrediu por vários anos.
— Em dois prédios que moramos, vizinhos me ajudaram. No primeiro, uma moradora avançou nele, para tirá-lo de cima de mim, numa das agressões. No segundo, um outro vizinho chegou a colocá-lo para fora do prédio — conta ela, sobre o ex-companheiro, hoje preso por causa da violência. — Mas além de me protegerem diretamente, eles conversavam muito comigo. E isso me deu coragem para denunciá-lo.
Se a ajuda de vizinhos foi fundamental para Kamila, a omissãode amigos e parentes causou justamente o efeito contrário sobre Samanta (nome fictício), de 21 anos. Ela sofreu abusos sexuais do próprio pai durante a infância, seguidos por uma sucessão de agressões físicas.
— Minha mãe e meus irmãos viam que ele me batia, mas não faziam nada. Fui humilhada e apanhei na frente de amigos, que também fizeram vista grossa — relata. — Como ninguém agia, eu achava que não adiantaria buscar ajuda.
Isso só fez com que eu ficasse mais acuada.
Recentemente, Samanta ficou muito sensibilizada com o relato da paisagista Elaine Caparroz, que foi agredida por quatro horas até que vizinhos e funcionários do condomínio onde ela mora acionassem a polícia. Ela, que ainda vive com o pai por medo de perder a única fonte de renda da família ao denunciá-lo, conhece bem o peso da falta de ajuda por parte dos moradores de seu prédio.
— A última vez que ele me bateu foi no ano passado e durou muito tempo. Via minha boca sangrando, mas ele não parava.
Eu gritava, e ninguém fazia nada. Ele me deu um mata-leão e fiquei sem ar — conta ela, que buscou ajuda em grupos de apoio depois desse episódio. — Se alguém tivesse intervindo antes, já teria solucionado o meu problema.
Tão importante quanto ajudar as vítimas, no entanto, é saber se aproximar da maneira certa. De acordo com a promotora Gabriela Manssur, julgamentos devem ser evitados.
— Se você faz isso, traz uma culpa enorme para uma pessoa que já está se sentindo culpada — diz. — É comum a mulher que está nessa situação se ver numa posição de passividade. Então, quem ajuda tem que assumir um papel mais ativo, mostrando caminhos e acompanhando as vítimas na hora de ir ao IML ou a locais onde possam obter apoio, como o Ministério Público.
Esses cuidados foram cruciais para que uma professora carioca, que prefere não se identificar, conseguisse ajudar uma amiga de longa data, que vinha sofrendo violência psicológica praticada pelo marido.
— Ele a desautoriza na frente do filho criança, e ela já me relatou que, às vezes, não leva uma discussão adiante, com medo das alterações do parceiro. Comecei a perceber também o quanto isso refletiu na saúde dela, que desenvolveu doenças como diabetes, compulsão alimentar e picos de pressão — afirma.
A gota d’água veio quando o filho a agrediu, e o pai ficou do lado dele, dizendo que a mãe havia provocado. Receosa de que esses abusos psicológicos se desdobrassem em agressões físicas, a professora propôs à amiga que fizessem uma visita ao Centro de Referência para Mulheres da UFRJ.
— Ela já tinha ido a psicólogos e até feito terapia de casal, mas nada adiantava. Então, achei que um atendimento especializado seria mais eficiente. Como argumento, disse que seria importante procurar ajuda, inclusive, para que pudesse lidar com o filho.
Na primeira visita, busquei minha amiga em casa e a levei de volta, depois de quase três horas de atendimento. A pedido dela, até participei dos momentos iniciais da conversa. Agora, ela já está disposta a um segundo encontro.
Histórias como essa, segundo a coordenadora do Centro, Marisa Chaves de Souza, têm sido cada vez mais recorrentes, conforme as questões de gênero ganham visibilidade.
— Até mesmo as mulheres que têm poder aquisitivo mais alto e antes tentavam resolver esses problemas contratando advogados, por exemplo, entenderam que, mesmo gastando todo dinheiro, não encontravam o acolhimento necessário — exemplifica Marisa, citando que o centro oferece atendimento integral, com psicólogos e assistentes sociais, em ações individuais e coletivas.
A gota d’água veio quando o filho a agrediu, e o pai ficou do lado dele, dizendo que a mãe havia provocado. Receosa de que esses abusos psicológicos se desdobrassem em agressões físicas, a professora propôs à amiga que fizessem uma visita ao Centro de Referência para Mulheres da UFRJ.
— Ela já tinha ido a psicólogos e até feito terapia de casal, mas nada adiantava. Então, achei que um atendimento especializado seria mais eficiente. Como argumento, disse que seria importante procurar ajuda, inclusive, para que pudesse lidar com o filho.
Na primeira visita, busquei minha amiga em casa e a levei de volta, depois de quase três horas de atendimento. A pedido dela, até participei dos momentos iniciais da conversa. Agora, ela já está disposta a um segundo encontro.
Histórias como essa, segundo a coordenadora do Centro, Marisa Chaves de Souza, têm sido cada vez mais recorrentes, conforme as questões de gênero ganham visibilidade.
— Até mesmo as mulheres que têm poder aquisitivo mais alto e antes tentavam resolver esses problemas contratando advogados, por exemplo, entenderam que, mesmo gastando todo dinheiro, não encontravam o acolhimento necessário — exemplifica Marisa, citando que o centro oferece atendimento integral, com psicólogos e assistentes sociais, em ações individuais e coletivas.
Eduardo Vanini
Fonte: Agência Patrícia Galvão