Crescimento ocorre após subnotificação em 2020. Registros de feminicídio no 1º semestre foram os maiores da série histórica iniciada em 2017. Duas mulheres vítimas de tentativa de feminícidio contam suas histórias do ciclo da violência.
Os casos de estupro voltaram a crescer no Brasil no primeiro semestre deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado, quando ocorreu uma subnotificação durante o isolamento social mais rigoroso, de acordo com levantamento inédito do Fórum Brasileiro de Segurança Pública obtido com exclusividade pelo g1 e pela GloboNews.
Os registros de feminicídio no primeiro semestre de 2021 foram os maiores da série histórica iniciada em 2017 (leia mais abaixo).
O número de estupros em geral e de vulneráveis, tendo a mulher como vítima, cresceu 8,3%, passando de 24.664 nos primeiros seis meses de 2020 para 26.709 neste ano. O crescimento ocorreu no período em que a pandemia da Covid-19 foi mais letal, com destaque para o mês de maio.
Os crimes que necessitam de uma notificação presencial em uma delegacia de polícia tiveram queda no 1º semestre de 2020, início da pandemia do coronavírus no Brasil, de acordo com a diretora-executiva do Fórum, Samira Bueno. O estupro é um deles e não pode ser registrado em boletins de ocorrência virtuais porque é necessário um exame de corpo de delito.
O fechamento das instituições, como as escolas, também contribuiu para a subnotificação e, recentemente, com a reabertura, um aumento de denúncias e casos de estupro.
“Quando a gente fala de violência sexual no Brasil a gente está falando de uma violência majoritariamente praticada contra crianças e adolescentes. Muitas vezes essa violência só chega ao conhecimento de uma autoridade policial porque é um profissional da escola, um professor que percebeu alguma mudança de comportamento nessa criança”, explica Samira.
“A interrupção das aulas por causa da pandemia, o isolamento social, fez com que muitas dessas crianças e adolescentes ficassem confinadas com os agressores e fez com que os casos de estupro de vulnerável tivessem um registro ainda menor do que o de costume em 2020. Em 2021, a gente tem abertura das escolas, um afrouxamento das medidas de isolamento social, e esses números voltam a crescer”, completa.
Para ela, é difícil cravar que trata-se de um crescimento real da violência ou se é uma diminuição da subnotificação.
“O fato é que nós estamos falando é que a gente tem quase 30 mil pessoas que sofreram violência sexual no primeiro semestre deste ano”, diz.
Feminicídio
Nos primeiros seis meses deste ano, quatro mulheres foram mortas por seus companheiros ou ex por dia no país: 666 vítimas de feminicídio de janeiro a junho, o maior da série histórica iniciada em 2017, quando as autoridades passaram a compreender melhor a Lei do Feminicídio, de 2015 (veja gráfico abaixo).
O número pode ser bem maior, já que estados como o Ceará registram feminicídios como homicídios, contrariando a lei. Desde 9 de março de 2015, a legislação prevê penalidades mais graves para homicídios que se encaixam na definição de feminicídio – ou seja, que envolvam “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Os casos mais comuns desses assassinatos ocorrem após uma separação.
A lei também prevê que assassinatos cometidos por companheiros ou ex-companheiros da vítima sejam registrados como tal, mas quase 15% dos homicídios de mulheres cometidos em 2020, em que os autores do crime eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas, não foram registrados devidamente como feminicídio, segundo o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho.
As maiores taxas de feminícidio por 100 mil de 2021 foram registradas em Tocantins, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
“Infelizmente, o primeiro semestre de 2021 tem o maior número já registrado, ainda que a oscilação em relação ao ano anterior não seja muito elevada. A gente tem um crescimento de 0,5%. Na prática, esse número ainda deve crescer. Porque é comum que algumas investigações ainda estejam em andamento, e que esses números ainda sejam retificados pelas delegacias de polícia”, diz Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para Samira, o Brasil enfrenta, concomitantemente à pandemia da Covid, uma epidemia da violência de gênero. Muitos serviços de apoio à mulher acabaram descontinuados porque não foram encarados como uma prioridade durante a crise sanitária.
“O que a gente está vendo no Brasil hoje foi algo que os países europeus enfrentaram, que os Estados Unidos enfrentaram, que a China enfrentou. Então a gente tem uma vasta literatura que mostra que, em momentos de crises, econômicas e sociais, sanitárias, a violência contra a mulher tende a crescer. Então é por isso que a gente precisa tanto de políticas públicas para prevenir esse tipo de crime. O feminicídio é um crime evitável”, completa.
Ciclo violência
O feminicídio é a última etapa do ciclo de de violência doméstica sofrida pela mulher. Começam com agressões verbais que escalonam até a morte.
Duas mulheres que escaparam com vida contam o percurso.
Victória
Victória Francisca da Silva está no primeiro ano do curso de jornalismo. Aos 20 anos, ainda revive todas as noites as lembranças e as marcas da tentativa de feminicídio que sofreu no dia 21 de abril. O ataque aconteceu logo após o término de um namoro de seis meses. Ela estava deitada no sofá de casa, no bairro de São Mateus, Zona Leste de São Paulo, quando foi atingida por 15 facadas pelo ex-namorado no rosto, peito, costas e braços.
Depois do crime, ele fugiu. Mas tentou contato com ela por redes sociais, até que ela conseguiu uma medida protetiva e o mandado de prisão contra ele, que continua foragido. “Eu torço muito pra conseguir esquecer aquela cena, eu acho que talvez eu nunca vá conseguir esquecer, mas eu espero poder superar. Porque todos os dias eu lembro bem, principalmente a noite… Eu só consigo dormir quando amanhece fazer algum barulho nos pais vão ouvir e virão aqui”.
E completa. “O que me dá mais indignação é saber que ele ainda não está preso. Não vai fazer que a minha vida seja a mesma de antes, mas acredito que vai ser um grande alivio o dia que ele for preso”. A família reclama da falta de empenho da Polícia Civil para investigar o caso e localizar o agressor. Hoje, eles recebem assistência jurídica de uma advogada que localizou Victória por uma rede social e se ofereceu para representá-la.
Na busca por justiça, a estudante conta o quanto abriu mão da vida antes do crime. “Eu perdi meu emprego, eu abri mão de sair, eu não gosto mais do meu corpo por causa das marcas, eu já fiz cirurgia está bem diferentes para amenizar, mas eu não consigo mais gostar de mim… Eu também abri mão de conhecer pessoas novas, porque eu acho que todas as pessoas podem ser igual. Eu tive que me sacrificar de muitas coisas”.
Victória diz que hoje consegue identificar como o relacionamento já era abusivo. “Toda vez que a gente brigava, ele chorava. Ele chorava, até que em fevereiro, quando eu comecei a faculdade, ele ficava com ciúmes, talvez de eu conhecer alguém mais parecido comigo. Então muitas das vezes ele fazia drama, pra eu não fazer a aula, pra eu ficar conversando com ele, pra eu poder dar atenção pra ele. No momento eu não entendia, hoje eu entendo que já fazia parte de um relacionamento abusivo”, conta.
Por isso, ela alerta que as mulheres devem procurar ajuda sempre que forem vítima de qualquer violência dentro do relacionamento. “Hoje em dia eu falo para as pessoas, não tenha medo, saia do relacionamento abusivo que quando uma mulher caiu outras milhares de levantar um juntas com ela. Não são mulheres, homens também me mandaram mensagem dizendo que isso é coisa que não se faz. Então recado que eu deixo pra todo mundo pra sair do relacionamento abusivo e não se preocupe. Eu estou a disposição pessoas a disposição pra vocês recomeçarem a vida.”
Marcela*
Marcela* tem 23 anos e foi casada por sete anos com o homem que tentou matá-la com golpes de facão no interior de São Paulo. O relacionamento abusivo começou com xingamentos, como “vagabunda, lixo, tenho nojo de você”, mas, nos últimos três anos, a violência se intensificou quando começaram as agressões físicas.
“Ele sempre falava que eu era meio inútil, com palavrões, sempre me deixando para baixo. Com o tempo, começaram os chutes e empurrões até ele atentar duas vezes contra minha vida. Só que da primeira eu não tive coragem nem de contar para ninguém, porque ele me encurralava e dizia: ‘Se você contar ninguém vai acreditar’”, relatou Marcela*, que teve o nome trocado por temer represálias do seu ex agressor.
Com um facão no pescoço, o marido a obrigava a manter relação sexuais. Ele também a marcou de morte quando soube que ela tentava chamar a polícia para denunciá-lo.
“Ali, naquele momento, eu vi que não dava mais. Se eu continuasse naquela casa, eu ia acabar morrendo, não ia ver meus filhos crescerem. Ele sempre falava ‘eu mato você aqui e, como a gente mora em sítio, eu jogo com você no meio do mato, ninguém vai saber’”, conta.
Depois da tentativa de feminicídio, Marcela teve ajuda de uma amiga e da ONG Bem Querer Mulher, que auxilia mulheres em situação de violência doméstica. Ela conseguiu se separar em novembro deste ano e voltou para a casa da mãe, que também foi vítima de violência doméstica.
O casal tem dois filhos, de 4 e 6 anos. A Justiça determinou medida protetiva para ela.
“Eu falo que eu estou começando a viver só agora, depois dos 23 anos, assim que me afastei dele. Saí de casa, arrumei um serviço, minha filha voltou para escola, ela está super feliz. Quero terminar os estudos, fazer cursos, para poder dar um futuro para os meus filhos, para não ficar presa num lugar só, sendo humilhada e massacrada.”
*Marcela é um nome fictício. A entrevistada optou por não se identificar para se proteger do agressor e preservar os filhos.
Se você é vítima de violência doméstica procure o 180 Disque Denúncia, a Polícia Militar ou uma delegacia.
Fonte: G1