Por defender os direitos das mulheres em sua comunidade, Rebecca Taina perdeu sua identidade perante tradicionalistas
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Para muitos ciganos tradicionalistas, Rebecca Taina perdeu o direito de ser cigana porque resolveu falar contra o machismo. “Tive minha identidade sequestrada de mim”, protesta ela. Mas ela insiste em ocupar um lugar de vanguarda dentro de uma comunidade que, por enfrentar tantos preconceitos, resiste em deixar-se mudar. Uma de suas bandeiras pessoais é o combate ao casamento infantil.
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Nesta entrevista a AzMina, ela fala sobre os limites entre especificidades culturais e violações de direitos.
As mulheres ciganas calon, de Boa Vista do Tupim, sertão baiano, nos relataram que casam-se entre 12 e 14 anos, em geral. Você considera isso um problema? Ou esta prática faz sentido dentro da cultura cigana?
Considero sim, um problema! Durante muito tempo as “representações ciganas ” junto ao governo alegavam que não havia casamento infantil e, sim, de adolescentes com 15, 16 anos. Isso não é verdade. Entendo que, na época dos meus avós e da minha mãe, isso fosse um pilar da cultura para que não nos “misturássemos” com os payos (não-ciganos).
Mas, hoje, eu vejo o casamento infantil como um absurdo, uma violência. Não existe nada que nos impeça de acabar com isso.
Algumas dessas mulheres me relataram que, se não sofressem tantos preconceitos e pudessem ter oportunidades de arrumar empregos, iriam dedicar-se mais a suas carreiras e estudos e se casar um pouco mais tarde. Acha que o poder público é culpado pela falta de escolha que elas enfrentam?
Em parte, sim, pois temos muitas dificuldades de inserção e falta de acesso à educação. Porém, eu entendo que essas mulheres moram em um rancho e, como você é uma payo, dificilmente elas assumiriam pra você que a cultura as oprime.
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Minha avó, que era italiana e não cigana, se casou aos 14 anos. Assim como avós de muitas pessoas vivas hoje. Esta prática foi abandonada gradualmente por muitos grupos culturais durante os últimos 80 anos (inclusive alguns grupos ciganos da Europa), mas não entre ciganas calon. Por que acha que isso não mudou entre elas também?
Bem, o casamento infantil não ocorre apenas entre os calon (uma das etnias ciganas). Ocorre muito no Leste Europeu, por exemplo. Na verdade, o casamento infantil é muito forte ainda no Brasil todo. Eu moro no Norte e lhe garanto que aqui o casamento infantil, infelizmente, ainda é uma prática. Nas próprias periferias de Rio de Janeiro e São Paulo, você encontra casais vivendo juntos, mesmo sendo menores de idade.
O que acontece ali (em Boa Vista do Tupim), e é importante esse recorte, é que nosso povo, os calon, e principalmente os “ranchados” (que vivem em ranchos), estão mais à margem da sociedade; então, eles mantêm mais forte a “cultura”.
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Por que “cultura” assim, entre aspas?
Como historiadora, sei que nosso povo não era originariamente cristão. Em nossa tradição original, vivíamos em uma sociedade matriarcal.
A mudança que justifica o casamento infantil para manter ‘a pureza’ da mulher tem a ver com nossa conversão ao cristianismo (e a influência, principalmente, das igrejas evangélicas neopentecostais) e não nossa cultura.
O relatório recentemente lançado pelo Banco Mundial mostra que meninas que casam e têm filhos na adolescência tem mais chances de mortalidade no parto e problemas com os bebês. Em Boa Vista, muitas mulheres entrevistadas, de fato, haviam perdido muitos filhos na primeira infância. Acha que elas poderiam se beneficiar de uma mudança cultural para um casamento um pouco mais tarde?
Com certeza. Na verdade, elas precisam entender que o casamento não é seu único destino. Que elas saibam que uma mulher cigana pode optar por não casar, por não ser mãe.
Eu não sou casada nem mãe e não me enxergo nesses papéis, por exemplo. Mas sei que há muitas outras maneiras de afirmar minha identidade cigana além dessas.
Tive a impressão de que as mulheres calon daquela comunidade eram muito submetidas pelos homens que, por exemplo, davam em cima das repórteres diante de suas esposas. Ciganos entrevistados mais tarde disseram que de maneira alguma este machismo é uma marca da cultura cigana, mas uma prática local que pode e deve ser combatida. Você concorda?
Eu vou lhe contar minha experiência. Aqui no Brasil, os ciganos tradicionalistas dizem que não sou cigana e qualquer mulher cigana que se levanta contra o machismo na nossa comunidade tem sua identidade de cigana “tirada”. Na Europa, me dou muito bem com os meus primos e primas, porque eles já se veem como feministas, ou pró-feministas.
Mas, aqui, sequestraram minha identidade cigana.
Pergunte para qualquer cigano brasileiro se existe cigano gay ou lésbica, por exemplo? Eles nunca seriam abertos a isso. Mas tem uma associação LGBTQI na Espanha. Quando você vive na comunidade, sabe a violência a que somos submetidas – desde essa negação de nossa identidade até violências como maridos que tem amantes payas, não deixam a mulher estudar mas pagam a faculdade da outra. E a mulher cigana tem que aceitar.
Um representante da Embaixada Cigana no Brasil me disse que a solução é dar oportunidades e liberdade para as mulheres ciganas, sem adotar um olhar punitivista para homens ciganos. E continuar permitindo que, se quiserem, meninas e meninos continuem se casando cedo. Você concorda?
Lógico que ele, como homem, quer que os ciganos continuem com seus privilégios machistas. Concordo com a ideia da autonomia, mas temos que entender que esse ‘desejo de casar’ está intimamente ligado à falta de autonomia sexual das ciganas. Quando você vive em uma comunidade pequena, você não tem a mesma autonomia sexual que um casal de adolescentes da cidade. Então, para realizar seu desejo sexual, só existe um caminho: o matrimônio.
Se não debatemos autonomia sexual e reprodutiva, não começaremos a vislumbrar o fim do casamento infantil.
Quando se fala de especificidades culturais, é sempre preciso ter responsabilidade e delicadeza para enfrentar o conflito entre direitos humanos universais e o direito a expressão cultural e identitária. Este é o dilema que o mundo enfrenta, por exemplo, quando tratamos do véu muçulmano ou da mutilação genital de algumas comunidades africanas. Em sua opinião, onde deve ficar o limite entre esses dois direitos? Culturas são (ou devem ser) mutáveis?
Estamos falando de uma questão bem delicada aqui. Por exemplo: eu não sou tradicionalista mas, se vou dar uma palestra, uso roupas ciganas e lenços nos cabelos porque, pra mim, minha roupa é uma forma de resistência política. Contudo, eu tenho essa escolha. No dia-a dia, uso roupas normais.
Eu colaboro com um blog de uma feminista islâmica, uma mulher culta e que usa o hijab porque, no país dela e com a atual islamofobia que vivemos, usar hijab é um ato político! Mas, uma mulher do Afeganistão que pode ser morta se não usar a burca, isso já é violência.
Cultura, pra mim, é o que você faz porque se orgulha de ser assim. Se você tem medo ou sofre se não seguir isso, não é cultura, é violência.
Fonte: AZMina