Marina* começou revendendo cosméticos em Juazeiro do Norte (CE), sua terra natal, onde era ajudante de cozinha. Há sete anos mudou-se para São Paulo, mais exatamente para a favela de Paraisópolis, na zona sul. Agora é registrada como empregada doméstica, e transformou um cômodo de sua casa em loja. “Coleciono miniaturas de frascos. Minhas clientes sempre falam: ‘tu só vive cheirosa’. Gosto de usar para passar para elas os produtos que são bons.”
Nos fins de semana e às quartas-feiras, Marina abre as portas para a clientela. A caminho do trabalho regular, distribui cartão nos ônibus e se comunica com clientes pelo WhatsApp. Quando chega ao serviço, desliga o celular, mas costuma vender “umas maquiagens pra patroa”.
Na igreja, deixa uma pilha de catálogos perto das Bíblias e folhetos religiosos. Ela encara esse comércio como um complemento. Antes da pandemia, chegou a lucrar R$ 2 mil em um mês. Com o auxílio emergencial parando, essa renda dela foi a quase zero.
O sistema de vendas diretas existe há mais de 100 anos, e tem legislação própria há cinco décadas no Brasil. A primeira imagem que vem à cabeça são as reuniões de vizinhas para mostrar e vender lingeries ou cremes, em uma típica sala de classe média. Neste século, porém, o mercado cresceu e virou bico ou profissão para um contingente de 4 milhões de pessoas, em um país e uma época em que emprego formal e direito trabalhista viraram perfumaria.
ESFOLIAR OU ESFOLAR?
Como controlar uma multidão sem vínculo nem jornada laboral? Resposta: boletos, prazos, metas, ranqueamento e concorrência. “O trabalho vai perdendo sua forma, mas os controles vão se aprimorando. E é muito fácil entrar nesse sistema. Antes o trabalhador precisava de um currículo. Hoje, faz um cadastro e pronto”, afirma Ludmila Abílio, pesquisadora do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autora de “Sem Maquiagem”, que aborda o setor.
Para ela, as vendas diretas se confundem com o próprio padrão em que as mulheres se inserem no mundo do trabalho. “É algo tipicamente feminino [a dupla ou tripla jornada de trabalho]. Então, essas grandes marcas entraram na lógica da ‘viração’, com mulheres acumulando funções como vender coxinha, sabonete e o que mais vier para sustentar a casa.”
A imensa maioria é classificada como vendedora multimarcas, mas é comum encontrar quem trabalhe com setores diferentes, fazendo promoções do tipo “compre um desodorante e ganhe uma tupperware”. Segundo Abílio, muitas empresas incentivam a prática, como outra forma de mostrar que não há elo trabalhista com as revendedoras.
LÁBIOS E LÁBIA
“A chave para o sucesso é não enxergar como trabalho, mas sentir que está preparando sua casa para uma ocasião especial. Quando os convidados se sentirem bem confortáveis, mostre os produtos, enquanto oferece lanches e mantém a mesma atmosfera.”
Essa instrução de como montar um evento doméstico de vendas também exemplifica como funciona o capitalismo carismático. Com as fábricas e depósitos cada vez mais robotizados, a massa trabalhadora migrou para o serviço de distribuição — como, por exemplo, o exército de entregadores nas cidades. No caso do sistema de vendas diretas, também para o marketing. Consultoras vendem batons no velho e eficiente “boca a boca”.
Esse método cria a tal capilaridade, com mercadorias entrando em escritórios, repartições, bairros periféricos e vielas. Abílio relata em seu livro a história de uma agente da Polícia Federal e revendedora, que guardava papelada das investigações em caixas da empresa Natura.
Com a pandemia, essa venda por relacionamento migrou para dentro dos celulares. O revendedor Alexandre* tirou de letra a transição virtual. Isso porque, em 2017, quando se mudou do Rio para São Paulo por conta de uma proposta de emprego, criou canais nas redes sociais para manter, mesmo à distância, sua clientela.
“É cansativo convencer o cliente pelo celular, mas compensa. Agora consigo vender para o Brasil todo e pude até largar o emprego fixo, que não me trazia tanta satisfação”, relata.
CORRETIVOS E SOMBRAS
A maioria das revendedoras, porém, teve dificuldade com a economia digital — e há um receio de que as marcas passem cada vez mais a vender diretamente para o consumidor final, de forma online, aumentando a concorrência.
Eduarda* viu suas vendas diminuírem muito e caiu no ranking das marcas, o que diminuiu a porcentagem da comissão. A maioria das empresas adotou nos últimos anos um ranking de produtividade — Natura e Boticário dividem suas revendedoras por categorias. A mais alta é chamada de “diamante” (em ambas).
O ranqueamento dá acesso às melhores comissões e condições. “É injusto no meio de um momento totalmente atípico que continuem validando essa classificação”, reclama Eduarda, que virou consultora há cinco anos, após um período desempregada.
Transições anteriores no setor foram duras, mas não tão rápidas. Lívia* largou seu emprego em uma editora nos anos 1980 para ser revendedora Natura porque “lucrava em uma semana com os cosméticos o mesmo que meu salário mensal”. À época, havia 2.000 consultoras da marca. A questão é que esse número só cresceu: 50 mil em 1990, 400 mil em 2007 e 1 milhão em 2010. Atualmente, suas “colegas de venda” chegam no país a 2,5 milhões, somando as da Avon, marca comprada pela Natura em 2019.
Agora sexagenária, Lívia segue vendendo, mas bem menos. “Eu tinha um vidão, morava sozinha e tinha empregada. Fazia toda a [avenida] Faria Lima, entrava tranquilamente nos bancos, nos shopping centers”, lembra. As portas foram fechando, as empresas proibindo o comércio informal em suas dependências, e o aumento da competição acabou com o mar de rosas.
MUITA BASE PARA POUCA BASE
“Pobre não usava creme facial, não, moço. Tenho conhecida minha que deixa de ir na feira, mas não fica sem máscara de cílios. Hoje, todo mundo trata o cabelo com vários produtos. Antes era shampoo, condicionador e olhe lá”, lembra Lúcia*, que negocia produtos Avon desde 1976. Aposentada e trabalhando como cuidadora de uma criança com deficiência, ela recorda de quando trabalhava numa fábrica e vendia para as colegas.
“Vendo por gosto, mas tenho muita dor de cabeça com os calotes. Minha filha briga comigo porque pego meu benefício e compro em produtos. Se eu dependesse desse lucro, estava perdida”, conta a morada da favela de Heliópolis, na zona sul de São Paulo.
Junto com o aumento do consumo no bairro, Lúcia viu a concorrência aumentar. Os gastos com beleza e higiene subiram 725% na classe C durante os governos Lula (2003-2010), mas também triplicou o número de revendedoras nessa época. Na prateleira, os requintados frascos de perfumes se transformaram numa espécie de troféu da ascensão social. A crise dos últimos anos veio, mas o hábito de consumo ficou.
Grandes marcas entraram na “correria” que sempre moveu a economia dos bairros pobres do país. Atualmente, com a taxa de desemprego beirando os 14% e a da informalidade passando dos 38%, o que era complemento de renda se transformou em principal ganha-pão.
Prova disso é que 68% das revendedoras têm entre 23 e 40 anos, justamente a faixa etária chamada de “millennial”, que já cresceu em um mundo em que a carteira de trabalho está mais para souvenir de antiquário.
RODAR O ESTOQUE
Procuradas pelo TAB, as empresas argumentam que, apesar de não terem vínculo empregatício com as revendedoras, ofereceram benefícios nos últimos anos, principalmente no período da pandemia. Boticário e Natura, por exemplo, ofereceram treinamento (cursos sobre educação financeira e estratégias de gestão) e adotaram processos para facilitar as vendas, tanto digitais como convencionais.
“Durante a pandemia, criamos um fundo emergencial para as consultoras que estão em situação de vulnerabilidade”, respondeu a assessoria de comunicação da Natura. À reportagem, a empresa ainda destacou seus programas contra violência doméstica e orientação sobre fake news.
Como um bônus, as consultoras da Jequiti podem ser sorteadas para participar dos programas do SBT, como o “Roda a Roda”, concorrendo a prêmios. Já as da Natura ganharam desde 2017 acessos e descontos em cursos educacionais e consultas médicas — a empresa tem até um IDH corporativo (Índice de Desenvolvimento Humano, criado pela ONU) para constatar melhorias sociais entre elas.
A ligação entre vendedoras e empresas, porém, ainda se dá apenas pelo cadastro (ser maior de idade e ter nome limpo no Serasa são requisitos básicos), as encomendas, seus respectivos boletos e os contatos com a promotora de sua região (essa sim um profissional contratada pelas empresas).
Esse tipo de relação é classificada nas pesquisas econômicas como um dos exemplos do precariado, parcela da população trabalhadora que perdeu direitos e vive em uma informalidade ligada a grandes corporações. O caso mais notório é o dos motoristas e entregadores de aplicativo, que somam hoje mais de 5,5 milhões de brasileiros, segundo o Instituto Locomotiva.
“O monitoramento e a cobrança têm um ritmo muito mais intenso entre os trabalhadores de aplicativos, mas o tempo também é o principal controle sobre as revendedoras”, compara Abílio. Elas têm de obedecer a ciclos de 21 dias, em geral, vinculados a datas como Natal ou Dia das Mães, com metas de pontuação, produtividade e ranqueamento.
Na maioria das vezes, há um valor mínimo para as compras junto às empresas, e as consultoras acabam encomendando produtos além dos pedidos. Esse excedente lota gavetas e prateleiras, como um sistema disperso de logística — mais uma função acumulada por elas. Em um país com grande estoque de desempregados e informais entre sua população, os lares também se transformam em depósitos.
*Os nomes desta reportagem foram alterados para que não afetar a relação das revendedoras com o sistema de controle das marcas
Fonte: UOL