Em 2013, mais de 200 mil meninas trabalhavam no Brasil e ninguém as via trabalhar.
Foram exatamente 213.613 meninas brasileiras com menos tempo de estudo por conta do trabalho. Mais de duzentas mil meninas, negras, perderam sua infância no trabalho infantil doméstico. Os dados fazem parte da pesquisa “Trabalho Infantil e Trabalho Infantil doméstico no Brasil”, produzida pelo Instituto Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (INPETI) e a Plan International Brasil e publicada em março de 2016.
O trabalho infantil doméstico é classificado como uma das Piores Formas de Trabalho Infantil, desde 2008. Ao realizar o trabalho infantil doméstico meninas – em sua maioria – têm violados os seus direitos à vida, saúde, educação, brincar, lazer e, ainda sofrem prejuízos ao seu desenvolvimento físico psicológico, cognitivo e moral.
Pensar o trabalho infantil doméstico requer a capacidade de articular as dimensões de gênero, raça e classe na construção desse cenário de violação de direitos que segue invisível. Só assim entenderemos que, mais de duzentas mil meninas trabalham, e dessas, 94% das crianças que o executam são meninas e mais de 73% são negras.
A sociedade gera expectativas de comportamentos, posturas e atitudes para meninas e meninos, mulheres e homens. Gera expectativas do que pode e não pode ser feito, deve e não deve ser feito; a partir dessa percepção vai estabelecendo os papéis e os lugares para meninas e meninos, mulheres e homens na sociedade. Vai construindo jeitos de serem meninas, meninos, mulheres e homens. Vai dizendo quem merece acesso total a direitos e quem não merece, vai estabelecer quem terá uma existência definida pela plenitude e quem não terá.
Essa mesma sociedade enxerga ainda o trabalho com uma fonte de purificação do caráter. E ao olhar para as crianças, especialmente crianças negras e pobres, essa noção ainda está presente e dessa maneira, sobre essas crianças vamos ter uma pressão social para que se ocupem, para que contribuam com as suas famílias e para que trabalhem, para evitar dessa forma, que caiam na marginalidade e na criminalidade. E assim se cria a justificativa e invisibilização social para o trabalho infantil.
É parte do processo de socialização de gênero, estabelecer primordialmente o lugar do trabalho com o cuidado, com a beleza, com o estético como o lugar dasmulheres, desde muito cedo, são socializadas para lavar, passar, cozinhar, cuidar dos mais novos e dos mais velhos. E dessa forma é muito comum a participação das meninas no trabalho infantil doméstico, bem como nos postos de trabalho que requerem exposição a seus corpos, que requerem habilidades com a limpeza e com a organização.
Uma vez, um homem me disse, ao voltar de um estudo por áreas vulneráveis no sul do País, que havia ficado escandalizado com a miséria branca, que lhe causou profundo horror ver tanta gente loira, de olho azul, miserável. Ele não sabia que, ao afirmar seu horror, também declarava sua complacência com a miséria em que vivem e podem viver a população negra nesse País. É disso que se trata da invisibilidade e da não indignação como consequência de uma naturalização de lugares sociais de meninas pobres e negras.
Não são poucas as pessoas no Brasil que já empregaram uma menina em suas casas, sob o pretexto de apoiá-la em seus estudos, livrá-la da fome e que submeteram ao trabalho infantil doméstico. E, em quase todas as ocasiões, essa situação de opressão foi invisível, porque é esperado que meninas pobres e, principalmente, se forem negras, precisem se esforçar e pagar um preço para ter acesso à educação, alimentação, etc. É natural que sejam as meninas pobres e negras a fazerem esse tipo de serviço.
Meninas especialmente pobres são constantemente cooptadas ao trabalho infantil doméstico. Uma sociedade que não reconhece a sua condição de sujeitas de direitos adere ao discurso do “pelo-menos” e agradece ao trabalho que as/os livra da fome/frio/criminalidade.
Uma sociedade machista e sexista vai determinar no mundo do trabalho infantil o lugar das meninas, assim como o viés de classe jogou a primeira camada de invisibilidade sobre a inserção dessas meninas nesse universo, o viés de gênero e raça lança a invisibilidade para os papéis que ocupam e determinará a permanência nesse universo.
É preciso que revisitemos a maneira como socializamos meninas em nossa sociedade, que revisitemos o olhar que temos para a cidadania de meninas negras e pobres, e que percebamos que em se tratando de direitos, a lógica não pode ser o “pelo menos”, e sim, é pelo máximo, é pela plenitude que devemos nos relacionar com a efetivação de seus direitos.
Fonte: HuffPost Brasil