A Gênero e Número conversou com atrizes, jornalistas e apresentadoras para entender os casos de assédio nesses meios profissionais. Por que a denúncia ainda é tão temida?
Você tem 23 anos e está começando uma nova vida em outra cidade. Procura emprego, é roteirista. Finalmente, é chamada para uma entrevista em uma produtora, mas o empregador está em viagem. De Cannes, corresponde-se com você por um mês, alimentando esperanças de te envolver em vários projetos que estão em andamento. Seu trabalho será valioso! Ao chegar, te convoca para uma entrevista em sua casa. Lá, te recebe enquanto toma banho, e você percebe que a porta do banheiro está aberta. Ao sair do banho, um pouco frustrado por não ter seu convite velado aceito, faz inúmeros elogios à sua beleza. Sem resposta, te leva à produtora, mas nunca faz outro contato. Não há nenhum trabalho à sua espera ali. Você não aceitou o jogo, continua desempregada.
Você tem 30 anos, é apresentadora de um grande canal de entretenimento da TV fechada. Em mais um dia normal de trabalho, você vai a uma gravadora entrevistar um artista. Na sua equipe, apenas um homem, o que leva o artista a comentar: “Assim que eu gosto, só mulher!”. Iniciada a gravação da entrevista, o sujeito elogia e acaricia seu cabelo sem a sua permissão. O trabalho segue, e o artista lança uma oferta à produtora do programa: se ela quiser um grande destaque para a matéria, ele poderia beijá-la em frente às câmeras, e certamente daria grande ibope. Tudo uma grande piada, afinal.
Você também poderia ser figurinista na equipe de uma novela global e ter sua vagina tocada por um ator, no ambiente de trabalho, sem a sua permissão. Ou ser uma jovem atriz, na década de 1950, estuprada por um diretor da Rede Globo que lhe ofereceu papel numa novela. Uma repórter em um canal de esportes insistentemente xingada de “puta”, “arrombada”, durante uma transmissão. Ou ainda uma jovem atriz negra de Recife, nesta década, coagida a ficar nua para algumas cenas pela pura e simples exposição de seu corpo. Você poderia ser Beatriz*, roteirista, Louise Palma, apresentadora do Multishow, Su Tonani, figurinista, Lady Francisco, atriz, Gabi Moreira, repórter da ESPN, ou Dandara de Morais, atriz, todas protagonistas reais dessas situações de assédio.
A denúncia põe em risco a vítima?
“Não posso ser identificada”. Essa foi uma frase muito ouvida no início da pesquisa para esse texto. Uma atriz, que inicialmente aceitou falar de forma anônima sobre um caso que sofreu, desistiu dias depois, pois teve um sonho com a situação que a afetou profundamente. Questionadas sobre o porquê de não denunciar, outras entrevistadas afirmaram que o prejuízo delas seria muito maior que o de seus assediadores. “Não vale a pena”.
Uma apuração do jornal americano The New York Times aponta que denúncias de assédio no meio profissional raramente são realizadas, especialmente porque as denunciantes não reconhecem algumas situações como assédio ou têm medo de serem estigmatizadas como pessoas difíceis de se trabalhar, tendo dificuldades de se manter no mercado de trabalho. O medo se confirma lá e aqui.
“Você não denuncia porque vão te chamar de fresca e afetada. E, depois, ninguém contrata repórter fraca. Ser fraco, no jornalismo, é feio. E se incomodar com assédio, na visão do colega ou do chefe que o pratica, é um sinônimo de fraqueza”. Gabi Moreira é repórter da ESPN e, numa transmissão, foi xingada durante 40 minutos por torcedores. “Puta”, “piranha”, “vadia”, “arrombada”. A jornalista diz que ofensas são comuns a ambos os sexos, mas os homens são chamados de “idiotas”. “O que ocorreu naquele episódio é uma situação quase que cotidiana, infelizmente. Mas foi mais chocante pelo tempo que durou. E também pela passividade de todos que estavam à minha volta”, conta.
Para a chef e apresentadora Bela Gil, muitas denunciantes ainda são vistas como golpistas e acabam desacreditadas. “Enquanto esse pensamento existir, as mulheres continuarão com medo de denunciar”. Bela tem como figurinista em seu programa Su Tonani, que há pouco tempo denunciou o ator global José Mayer de assédio sexual. A apresentadora acredita que o enfraquecimento das leis trabalhistas deixa as mulheres ainda mais vulneráveis aos assédios, pois o medo de não se inserir no mercado novamente é maior.
A atriz e apresentadora Elea Mercúrio trabalha como freelancer e concorda com Bela. “Quando você trabalha com as mesmas pessoas por bastante tempo, é provável que as relações se desenvolvam para além do profissional e que você se sinta mais seguro. O modelo (de trabalho) por projetos pode dificultar essa aproximação com os colegas. Além disso, você não tem direitos trabalhistas. Isso deixa as mulheres menos seguras”. Elea fez a prostituta Kiki na novela Avenida Brasil, da Rede Globo, além de outros trabalhos em grandes emissoras, mas nunca sofreu assédio no ambiente profissional.
Na produção audiovisual, a grande maioria dos profissionais trabalha por projetos, e não de forma estável. Dessa forma, uma mulher que denuncia assédio pode não mais ser chamada a trabalhar, sem que o motivo jamais seja esclarecido, e isso pode causar também perturbação psicológica e insegurança quanto à qualidade de seu trabalho. Em relato publicado numa rede social, a atriz Dandara de Morais, de Recife, conta como foi coagida a ficar nua em uma cena de sexo em que o ator manteve-se de cueca com a justificativa de que era casado e não queria se expor. Tendo denunciado o caso publicamente, a atriz ainda sofre retaliações, enquanto o colega continua trabalhando normalmente. “Eu vivo uma nóia onde toda pessoa que trabalha com cinema diz que eu sou difícil de trabalhar, e é por isso que não tenho trabalhado ultimamente. É desgastante”, desabafa.
Gabi conta que já perdeu muitas boas matérias por não se submeter ao assédio. As melhores pautas, segundo a repórter, se desenvolvem na apuração de bastidores, em pedidos de documentos e declarações a dirigentes, jogadores. Não raramente, esses pedidos têm como resposta “convites” para jantares, encontros pessoais, quando feitos por profissionais mulheres. “Vamos tomar um chopp, só nós dois”, ouve. Homens não têm sua apuração condicionada a favores sexuais. “São essas coisas que podem parecer menores, afinal, é apenas uma oferta de jantar – imagina! -, mas ali você sabe que está sendo subjugada. A relação homem e mulher está sendo colocada na mesa para que você possa fazer seu trabalho. Pra mim, isso é assédio”, encerra.
Barulho das redes fortalece denúncias
É difícil para as mulheres denunciarem abusos em seus ambientes profissionais, mas alguns relatos podem fortalecer o movimento de combate ao assédio. O relato de Su Tonani, por exemplo, desencadeou a campanha #mexeucomumamexeucomtodas nas redes sociais e abriu espaço para que outros casos viessem à tona.
No Twitter, foram 173.449 postagens de quase 88 mil usuários sobre o tema entre os dias 27 de março e 5 de abril de 2017. Diferentemente de outros temas virais, a presença de perfis humorísticos e veículos de imprensa não foi dominante. Atrizes como Camila Pitanga, Leandra Leal, Tais Araújo, Letícia Spiller e Cissa Guimarães tomaram a frente.
Além de declarações de repúdio ao assédio e apoio à figurinista, outras três questões receberam destaque no período: a decisão da Folha de S. Paulo de retirar o artigo do ar sob a alegação de desrespeitar princípios editoriais da publicação (depois o jornal voltou atrás); o pedido de desculpas divulgado pelo ator; e relatos de casos recentes de assédio contra a mulher envolvendo personalidades do meio artístico.
A campanha impulsionou mais denúncias, como o que ocorreu no programa Big Brother Brasil 17, também da Rede Globo. Diversos espectadores apontaram para a violência psicológica praticada pelo participante do reality Marcos Harter contra sua namorada Emilly Araújo. Ele acabou expulso do programa por conta das acusações.
A alusão ao reality show nas redes do #mexeucomumamexeucomtodas vem com os termos “Marcos” e as hashtags #foramarcos, #redebbb, #bbb e #chegadededonacara. Além dele, a decisão da Justiça de Minas Gerais em acatar a denúncia contra Victor Chaves, da dupla sertaneja Victor e Léo, foi celebrada na rede como uma vitória na luta contra o assédio.
Ainda que exista um segmento da rede (em azul) que trate o tema com viés humorístico, a maior parte da rede se comportou de maneira homogênea, demonstrando apoio à denúncia de Tonani. O tema conectou atrizes, perfis humorísticos e ativistas feministas por um objetivo comum: o engajamento na luta contra o assédio no meio artístico e a violência contra a mulher.
Marília Gonçalves é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
Bianca Bortolon é jornalista, pesquisadora no Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic/Ufes) e colaboradora da Gênero e Número.
Fonte: Gênero e Número