Quando soube que a tenente-coronel Cláudia Moraes, 47, visitaria o 3° Batalhão da PM para uma sessão de fotos, a tropa resolveu preparar uma festa-surpresa, com direito a bolo, refrigerante e salgadinhos. Aquela seria a primeira visita de Moraes, que responde pela Patrulha Maria da Penha – Guardiões da Vida, à Sala Lilás. “É tão linda!”, exclamou, referindo-se ao espaço reservado ao atendimento de mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Foi ali que Cláudia posou para algumas das fotos que ilustram esta reportagem. No começo da sessão, relutou em retirar a máscara. “Não passei batom. Nem trouxe blush”, desconversou, em tom de brincadeira. Pouco depois, atendeu ao pedido da reportagem, com a condição de tirar a foto segurando o equipamento de proteção.
Desde que foi criada, em agosto de 2019, a Patrulha Maria da Penha já realizou 45 mil fiscalizações de medidas protetivas. O melhor dado: não registrou nenhum caso de feminicídio. Em tempos de pandemia, o trabalho dos agentes praticamente dobrou. Passou de 4,3 mil atendimentos no primeiro bimestre de 2020 para 8,6 mil no mesmo período deste ano. Ao todo, já foram efetuadas 253 prisões — a maior parte por descumprimento de medida protetiva ou flagrante de crimes contra a mulher. “A gente não comemora a prisão desses homens. A gente comemora a vida dessas mulheres. Se violaram a medida protetiva, boas intenções não tinham”, afirma Moraes, que tem mestrado em ciências sociais e especialização em gênero e direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
Pertinho da Sala Lilás, o refeitório do 3° BPM foi transformado em salão de festas, com a oferta de um bolo confeitado na cor lilás, torta de morango, prato de salgadinhos, frutas e refrigerantes. Pouco antes de cortar o bolo, Renata Fernandes, 50, uma das 18 mil mulheres assistidas pelo Programa Maria da Penha, ganhou flores do major Iecin, subcomandante do 3° BPM. Moradora de Engenho de Dentro, bairro da zona norte do Rio, ela admite ter sofrido violência tanto do pai, quando criança, quanto do companheiro, já adulta. Indagada sobre se queria preservar sua identidade, respondeu que não: “Não tenho do que me envergonhar. Quem tem que ter vergonha é quem agride. Tenho é orgulho em dizer que a Patrulha Maria da Penha mudou a minha vida”, disse, emocionada.
Cada uma das 43 equipes do programa Maria da Penha é formada por uma dupla de policiais: um do sexo masculino e outro do feminino. “Em geral, mulheres em situação de violência se sentem mais seguras e acolhidas em relatar o que sofreram para outras mulheres”, explica a tenente-coronel.
Cláudia afirma nunca ter sofrido ou testemunhado violência doméstica ou familiar dentro de casa. “Faltou muita coisa, menos amor e respeito”, conta a mais velha de quatro irmãos, nascida e criada em Vila Kennedy, na zona oeste do Rio. Cláudia trabalhava como atendente de telemarketing na antiga Telemar, empresa de telefonia, quando um namorado lhe perguntou por que ela não fazia prova para a Polícia Militar. Recém-aprovada no vestibular da UERJ para ciências sociais, resolveu arriscar. Quando viu o resultado no jornal, não acreditou. “Meu Deus do céu, e agora? Ainda tenho prova física para fazer. Não corro nem para pegar ônibus…”, recorda. De prova em prova, Cláudia Moraes ingressou na PM aos 26 anos.
Em 2004, ela viveu o pior momento de sua vida: seu irmão, também policial militar, morreu ao reagir a um assalto. “Não há dor maior”, define. Não bastasse a dor da perda, ainda teve de dar a notícia para a mãe e a cunhada, grávida de oito meses. “Durante um tiroteio, você nunca pensa que vai morrer. Mas, depois que perdi meu irmão, comecei a refletir: ‘Minha mãe não pode enterrar mais nenhum filho!’. Foi quando pensei em desistir da corporação”, diz, com a voz embargada.
Em vez de aposentar a farda, passou a trabalhar na Academia de Polícia Militar Dom João VI, em Sulacap, responsável pela formação de oficiais. O desejo de atuar em defesa de vítimas de violência doméstica e familiar – além de sofrer abusos de namorados, maridos e companheiros, muitas mulheres são agredidas pelo pai ou irmãos – nasceu em 2010 quando começou a trabalhar no Instituto de Segurança Pública (ISP) como analista criminal, na elaboração do Dossiê Mulher. O relatório, criado em 2005, traz informações relativas à violência contra a mulher no Estado do Rio.
Apenas 4,9 mil policiais dos 44,6 mil que integram a PM do Estado do Rio são do sexo feminino. Algo em torno de 11% do efetivo. Dos tempos em que era tenente e circulava mais pelas ruas, Cláudia guarda a cara de espanto das pessoas ao verem uma mulher vestindo farda, com uma arma no coldre. “Parecia até que tinham visto um ET”, brinca. Ao ser indagada sobre se a corporação é machista, ela responde: “A sociedade é machista!”. Em um universo de 39 batalhões, faz as contas, apenas três ou quatro são comandados por mulheres.
Cheiro de carne queimada
Em um ano e sete meses à frente da Patrulha Maria da Penha, Cláudia aponta um caso ocorrido em Volta Redonda, município a 127 km da capital, como um dos mais terríveis. O sujeito esperou a companheira dormir para jogar líquido inflamável e, em seguida, atear fogo nela. Quando a equipe do 28° BPM chegou ao local, encontrou o corpo da mulher, ainda viva, parcialmente queimado. Detalhe: a filha do casal, de apenas nove anos, testemunhou tudo. O agressor foi preso e a vítima, felizmente, sobreviveu. “O policial que registrou a ocorrência contou que levou dias para se livrar do cheiro de carne queimada. Toda vez que ele fechava os olhos via o rosto daquela mulher”, relata a tenente-coronel.
Histórias como essa mexem muito com Cláudia. Ao chegar em casa, admite, demora a “se desconectar”. Seu marido é o coronel da reserva Robson Rodrigues, ex-chefe do Estado-Maior da PM do Rio. O casal não tem filhos. Para espairecer, seus hobbies favoritos são gastronomia e jardinagem. Outra estratégia, conta, é fazer amizade com quem não é da corporação, na esperança de conversar sobre outros assuntos. “O desafio de qualquer policial é tentar viver uma vida normal”, afirma.
A confraternização ainda não tinha terminado, mas a tenente-coronel Cláudia Moraes já precisava ir. Tinha uma reunião agendada às 17h. Depois de se despedir dos colegas de farda, ainda fez um afago em Pretinha, a mascote do batalhão. Trocou um último abraço com Renata, a razão de a Patrulha Maria da Penha existir. “Eles só podem fazer a parte deles se a gente fizer a nossa. E a nossa parte é denunciar o agressor. Sei o quanto é difícil. Mas, é preciso ter coragem e determinação”, afirmou a assistida, com os olhos ainda marejados com a homenagem recebida.