CNJ excluiu nomes de mulheres e de crianças após a Folha revelar falha
(Folha de S.Paulo, 1/06/2018 – acesse no site de origem)
O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) retirou do ar informações sigilosas de processos em segredo de Justiça que haviam se tornado públicas no Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), criado pelo órgão.
A Folha identificou no sistema do Judiciário dados de vítimas, como os nomes de crianças que foram estupradas e até mesmo o número de telefone de mulheres que foram alvo de violência doméstica.
Essas informações constavam em uma categoria que foi retirada de todos os mandados de prisão disponíveis no site do CNJ. O conselho afirma que adotou a medida após a reportagem da Folha ter revelado essa falha no sistema.
“Essa brecha na alimentação dos dados, sob responsabilidade dos tribunais, ficará definitivamente sanada com a implementação do novo sistema de cadastro de presos, o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, conforme indicado na própria reportagem do jornal”, diz o órgão.
O BNMP reúne todos os mandados de prisão do país e é atualizado diariamente. A Folha baixou todo o conteúdo de 7 de março. Nele havia 576 mil ordens de prisão (ou de evolução de pena), com tempo de condenação, idade, profissão e data do delito, entre outras informações.
A reportagem analisou cerca de 800 mandados de processos que geralmente correm sob sigilo, relacionados a crimes de violência sexual ou que envolviam menores.
Um em cada quatro tramitava em segredo de Justiça nos tribunais estaduais, mas estava explícito no BNMP. Em alguns casos, havia descrição de como ocorreu o abuso sexual.
Essas exposições contrariavam uma resolução de 2016, na qual o próprio CNJ determina que os tribunais do país devem restringir a identificação de vítimas apenas às iniciais de nome e sobrenome, principalmente em crimes sexuais contra vulneráveis. O conselho é responsável pela fiscalização e controle das atividades do Judiciário.
A divulgação de informações sigilosas não é uma falha exclusiva do BNMP.
Diários oficiais dos tribunais também costumam expor a identidade de vítimas de violência doméstica e de estupro, incluindo menores. A reportagem localizou casos assim em 26 estados e no DF.
Há processos que, apesar de omitir a identidade de vítimas no resumo, as revelam ao longo do texto de um despacho ou de uma decisão que é publicada em diário oficial.
Foi o caso da analista de infraestrutura Maria Claudia (nome fictício). Em 2017, a Justiça do Rio Grande do Norte decidiu que estava prescrito por falta de provas o processo que ela havia aberto sete anos antes contra seu ex-companheiro. Maria Claudia estranhou a decisão. Como falta de provas, se o processo tinha 102 páginas? Mas a decisão abriu uma nova ferida: o processo dela foi parar nas páginas de busca na internet.
Basta colocar o nome dela na busca e lá está o processo na primeira página do Google, no site do JusBrasil (especializado em temas jurídicos). Mas e o seu ex-companheiro, acusado de violência doméstica? Ele virou apenas uma sequência de 18 números nos dados que estão expostos na internet.
A exposição criou uma série de problemas para Maria Claudia, que afirma ter sempre tomado cuidado com sua vida particular na internet.
O mais forte foi quando foi procurada por uma mulher, durante suas férias, em que ela dizia estar interessada em suas fotografias (um dos hobbies da analista). Maria Claudia deu seu telefone para ela e, na realidade, seu contato foi repassado para outra mulher que dizia também ser vítima de seu ex-companheiro. “Em plenas férias eu tive crise de ansiedade, crise de pânico.”
O processo também passou a interferir em seus relacionamentos. Logo que conhecia alguém o assunto batia à porta. “Não queria falar daquilo logo no começo, queria que fosse algo que surgisse ao longo do tempo.”
Maria Claudia afirma ter mais de uma vez usado a ferramenta do JusBrasil que permite fazer o pedido de remover informações pessoais. Segundo ela, os dados são realmente apagados, mas depois de dois ou três meses eles voltam a aparecer na internet.
O JusBrasil coleta e reproduz diários oficiais de todos os estados. Nas palavras de Rafael Costa, diretor do portal, é como um Google de documentos oficiais.
Por reproduzir de maneira automática o conteúdo de páginas oficiais, o JusBrasil não tem condições de corrigir falhas que vêm dos próprios tribunais de Justiça, diz Costa. Segundo ele, 300 mil novos documentos são adicionados por dia à plataforma.
“Estamos aperfeiçoando essa questão, é uma dificuldade para nós também. A gente quer dar transparência para o que é para ser transparente, e não para erros.”
Ele comenta que o site permite que vítimas de exposição indevida entrem em contato e peçam para retirar seus nome.
A reportagem procurou os 27 tribunais de Justiça em que localizou a exposição de dados de vítimas de estupro, consideradas vulneráveis pelo CNJ.
Nove responderam (BA, CE, ES, RS, RR, SP e SE). O TJ do Rio não comentou os casos específicos e encaminhou dois artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em comum, os tribunais dizem que conhecem a recomendação do CNJ de proteger a identidade de vítimas e que os casos localizados foram episódios isolados.
ENTENDA O BNMP
O que é o Banco Nacional de Mandados de Prisão?
Uma base de dados de todos os mandados de prisão expedidos no país, com atualização diária. Sua versão pública, que pode ser consultada no site cnj.jus.br/bnmp ou pelo aplicativo Sinesp Cidadão, deveria trazer apenas os mandados não cumpridos e que não estão sob sigilo
Quando foi criado?
Em 2011, a partir de uma resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), órgão que gere o banco. Quem alimenta os dados são os tribunais de Justiça dos estados
Para que ele serve?
Ele agrega mandados de todo o país numa única base, permitindo que alguém foragido de um estado possa ser preso em outro —se um foragido da Justiça de Pernambuco for parado em blitz em São Paulo, por exemplo, o policial pode consultar o BNMP e fazer a prisão
Quais os problemas?
– A base expõe processos sigilosos, com identificação de vítimas, inclusive menores de idade, e detalhes
de estupros
– O preenchimento tem erros, omissões e duplicações (um mesmo mandado aparece 30 vezes)
– O banco é desatualizado. Os tribunais têm até 24 horas para registrar quando um mandado é expedido, cumprido ou extinto, mas esse prazo não é respeitado. Por isso, mandados sem validade aparecem como pendentes
O que o CNJ diz sobre a violação de dados sigilosos?
Que “a responsabilidade pela atualização das informações do BNMP, assim como pelo conteúdo disponibilizado, é exclusivamente dos tribunais e das autoridades judiciárias responsáveis pela expedição dos mandados de prisão”
O que o CNJ diz sobre os outros pontos?
Que os equívocos são pontuais e derivam de problemas de operação dos TJs. Afirma ainda que na nova versão da base, em andamento, esses problemas devem ser resolvidos
Quais serão as diferenças entre as duas versões?
Além de um cadastro com dados de todos os presos no Brasil, o BNMP 2.0 passará a se chamar Banco Nacional de Monitoramento de Prisões e vai agregar alvarás de soltura e o status do preso (provisório ou condenado). O juiz responsável pelo caso será notificado a cada movimentação
Quando a nova versão ficará pronta?
O prazo para que todos os estados entreguem os dados é 30 de maio. SE, RR e GO já finalizaram os cadastros, MG, RJ e RS ainda não começaram e SP, que tem o maior número de presos e processos, concluiu 18% da etapa. Os TJs consultados informaram que pretendem finalizar tudo até a data estipulada
O que dificulta a tarefa?
Segundo 17 TJs que responderam à reportagem, há demora na consolidação dos dados (que nem sempre são digitais) e divergências no número de presos. Alguns estados também reclamam da lentidão e instabilidade do sistema de cadastro
O que o CNJ diz?
Que o treinamento intensivo dos servidores nos tribunais e a comunicação automática de alguns sistemas dos TJs com o BNMP 2.0 (o dado lançado em um entra simultaneamente no outro) devem combater erros
Fonte: Agência Patrícia Galvão