A lei de alienação parental causa polêmica desde que foi instituída no Brasil. Criada em 2010, ela é criticada por órgãos internacionais e é repudiada por mães e ONGs que lutam pela defesa das mulheres. Quem defende sua aplicação afirma que é o instrumento de proteção às crianças.
A crítica é de que a lei abre brechas para que homens acusados de violência sexual contra os filhos respondam processando a mulher por alienação. Alice* é uma das mães que diz ter sido lesada. Ela conta que percebeu que sua filha mudou o comportamento aos 3 anos —há 9— após um final de semana na casa do pai.
Já na casa da mãe, ela pediu para ir ao banheiro e gritou de dor na hora de fazer xixi. “Levei para cama e vi que estava com várias lacerações na genitália e no ânus”, contou a Universa. A reportagem teve acesso ao processo de estupro de vulnerável e a laudos que comprovam as agressões.
Na noite em que percebeu os machucados na filha, ela foi para o hospital e a médica indicou que ela fosse a uma delegacia, pois as lacerações levantava uma suspeita de abuso sexual. A partir daí, Alice entrou em uma briga com o ex-marido.
Quando o pai pediu que as visitações fossem restabelecidas, o Ministério Público acrescentou ao processo que ela estava fazendo alienação parental.
Os dois lados da moeda
Em novembro de 2022, a ONU mandou uma carta para o presidente Lula (PT) com diversos pedidos em relação à segurança das mulheres e crianças do país. Um deles era que a lei de alienação parental fosse revogada. Segundo os relatores, ela leva a discriminação de gênero, principalmente quando há luta pela guarda das crianças.
Para Maria Berenice Dias, advogada e Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) a lei é boa, sim. Segundo ela, o que existe é uma campanha feita por “algumas mães e uma avó” para distorcer sua finalidade.
“A lei não é contra as mulheres, é a favor das crianças. Não interessa quem pratica os atos de alienação. Pode ser a mãe, o pai, o avô?”, disse para Universa. Ela enxerga que muitas mães veem os filhos como posse e que não sentem a necessidade de dividir a guarda e nem dar satisfação na criação.
Já a promotora de justiça do Estado de São Paulo e professora de direito da PUC-SP, Valéria Scarance, questiona o motivo do Brasil insistir em uma lei que coloca em risco mulheres e crianças.
“Já me deparei com muitos processos tristes, muitas mães desesperadas, muitas situações que me fizeram perder o sono. Uma em particular me chamou a atenção, de uma mãe que quase foi morta nas mãos de agressor. Ele agrediu na frente da criança, e ela era obrigada a ficar se aproximando do pai agressor, se não, ia ser processada de alienação”, contou em entrevista para Universa.
Segundo a promotora, a estimativa de falsas denúncias é de 0,5% no Brasil. “Em regra, e na imensa maioria dos casos, as denúncias são verdadeiras, mesmo quando as crianças se retratam”, diz Valéria. Relatores da ONU questionaram nominalmente Maria Berenice Dias por uma estatística dita por ela em uma de suas.
“A juíza do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias (…) alegou que em 30% dos casos, detecta-se que não houve abuso, em 30% eventualmente há abusos, e que em 40% não dá para identificar a existência de violência, sem ter nenhuma prova ou fontes dessas alegações”, diz a carta. Sobre a colocação a advogada se defende.
“Eu não tenho dados, sempre disse que não tenho dados, me perguntaram minha experiência profissional”, esclareceu a Universa.
Do lado de quem é contra a lei há também Sibele Lemos, co-fundadora do Coletivo Proteção à Infância Voz Materna. “A lei faz uso de ideologia. É uma estratégia de silenciamento das mulheres que denunciam violência contra os filhos. Invisibiliza uma realidade”, explica. Segundo ela, há muitos casos de inversão de guarda que gera a manutenção da violência, fortalecida por ferramentas legais.
“Temos casos de mulheres em que os pais das crianças são condenados por violência doméstica, ganham guarda compartilhada e as crianças voltam machucadas após as visitas”, explica Sibele.
“Há diversos exemplos e relatos de como a Lei da Alienação Parental é utilizada para coibir denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes e constranger as mães. Ela é parte de uma tese que já foi contestada inclusive pela ONU”, diz a deputada federal Sâmia Bomfim para Universa. Ela e outras parlamentares do Psol protocolaram um projeto de lei que pede que as disputas de guarda não podem ser regidas por uma legislação que descredibiliza denúncias tão importantes como essa.
Dez anos de briga
Após o pai da filha de Alice entrar na justiça para retomar as visitas, a criança passou por três perícias judiciais que concluíram que o genitor poderia vê-la. E que a mãe, Alice, era alienadora. “Em um dia de brincadeira, ela colocou a mão dentro da minha calcinha. Eu já tinha conversado sobre limite. Então perguntei porque ela tinha feito. Minha filha falou que o papai brincava assim, de tocar a pepeca e os peitinhos”, conta.
Mais denúncia e mais avaliações. Dessa vez, a perita disse que a menina estava fantasiando, mesmo com todos os sintomas de trauma voltando à tona. “Toda vez que minha filha começava a falar de abuso a perita trocava de assunto. Minha filha pediu para sair, para tomar água e a perita não deixava. Foi uma sessão de tortura”, conta Alice.
Dessa vez, a justiça concedeu visitas monitoradas, que foram interrompidas por um período na época da pandemia, mas logo retomadas. “Minha filha não queria ver o pai de novo, entrou em choque, pânico, passou mal dentro do fórum. A visita que era pra durar três horas durou uma”, conta.
Em quase uma década de briga na justiça, Alice perdeu todos os bens que tinha para pagar por advogados e terapia. “Exauri meu patrimônio, tudo o que eu tinha: casa, dinheiro na poupança. Hoje moro de aluguel e em uma situação mais precária. Fiquei muito depressiva, sobrevivi a três tentativas de suicidio. Existe, além da violência do genitor, a do Estado deslegitimando, e dizendo que você não é uma boa mãe, sendo que você só fez o que a lei manda: em caso de suspeita de abuso, denunciar”, conta.
Alice também foi denunciada por denunciação caluniosa, que seria mentir na hora de reportar um crime, além da denúncia de alienação parental. Mas foi absolvida. Agora o pesadelo parece estar chegando ao fim.
“Um promotor do Ministério Público suspendeu as visitas totalmente e disse que não houve alienação parental. Estamos aguardando a sentença do juiz. Historicamente o juiz não contraria o MP”, conta.
Cris Fibe: ‘Há casos em que a Justiça dá mais voz ao pai ao invés de priorizar o bem-estar da criança ou adolescente’
O Sem Filtro de hoje (23) discutiu a lei de alienação parental e, para a jornalista Cris Fibe, às vezes a Justiça acaba dando mais voz aos pais das crianças e alienando a mãe da convivência com os próprios filhos.
Há casos em que a Justiça, digamos assim, dá mais voz ao pai que entra com o pedido de uso da alienação parental e acaba não priorizando de fato o bem-estar dessa criança ou adolescente. Há uma inversão. As mães, na tentativa de proteger essa criança de ser alienada, o genitor entra com essa acusação e o estado acaba alienando a criança do convívio com a mãe.
Fibe também pontuou que a lei acaba sendo usada como uma forma de homens desqualificarem as mães e, por vezes, as mulheres acabam sendo acionadas na Justiça por denunciação caluniosa. Para ela, isso é reflexo de um machismo da sociedade e, por isso, a lei acaba distorcendo o objetivo principal de proteger crianças e adolescentes.
“Há uma desigualdade na capacidade de acesso a lei. O homem vai lá e ganha rapidamente. A Justiça é muito ágil para tirar a guarda de uma mãe porque um pai está dizendo que a mãe está falando mal dele”, disse.
Semayat: ‘A denúncia é uma documentação extremamente útil na defesa das mulheres’
Em muitos dos casos dos casos de alienação parental há também uma violência sexual contra as crianças e, por isso, Semayat Oliveira destacou a importância das denúncias durante o Sem Filtro.
A jornalista destacou que as denúncias podem ser feitas de forma anônima e que elas se tornam a principal ferramenta para mães, mulheres e cuidadoras tenham referências e documentos que mostrem a realidade vivenciada.
A gente precisa denunciar porque isso também é uma documentação que é extremamente útil quando a gente pensa na defesa de mulheres que estão nesse tipo de situação.