Após mais de 30 anos da edição pela ONU da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), que foi ratificada pelo Brasil, as mulheres seguem sendo a minoria em todas as esferas de poder, inclusive no meio acadêmico, no Ministério Público, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário[1]. Além disso, quando as mulheres exercem essas funções de poder, são duramente cerceadas por alguns de seus pares que ainda pregam a ideologia da desigualdade e da discriminação.
Crescem nas redes sociais as constatações acerca da falta de participação das mulheres nas mais diversas esferas de poder e liderança, inclusive no meio acadêmico. Recentemente, a professora da FGV Tathiane Piscitelli chamou a atenção para a composição exclusivamente masculina de uma mesa no Seminário Internacional Tributo ao Brasil, a Reforma que Queremos, o que gerou diversos comentários discriminatórios por parte de algumas pessoas, que se utilizaram desde o argumento vazio da meritocracia até a antiga máxima “lugar de mulher é na cozinha”. Além disso, há reclamações das mais diversas quanto à participação das mulheres em eventos, quando esta participação é permitida, em palestras, congressos e seminários, porque, por vezes, são colocadas em último lugar no debate, para que não possam exercer a sua fala com plenitude.
Não é diferente no Ministério Público de São Paulo, em que chamamos a atenção, por meio da Diretoria da Mulher da APMP, para a composição exclusivamente masculina dos membros da Banca de Concurso de Ingresso à Carreira, bem como para uma visível queda no número de aprovação de promotoras de Justiça, muito embora as pesquisas demonstrem que as mulheres representam a maioria das universitárias[2]. Igualmente no Poder Judiciário, pois as mulheres integram as carreiras jurídicas como juízas, mas ainda são poucas as presidentes de tribunal. O estado de São Paulo, por exemplo, nunca teve uma mulher ocupando esse cargo na magistratura ou na Procuradoria-Geral de Justiça. Existem, porém, alguns avanços em meio aos retrocessos. O Ministério Público Democrático atualmente é presidido por uma mulher, a promotora de Justiça Laila Shukair.
No Poder Judiciário, a ministra Cármem Lúcia brilhantemente chamou a atenção para o fato de que as juízas, até mesmo da suprema corte, são mais interrompidas do que seus pares homens, o que demonstra claramente um grande obstáculo à sua atividade jurisdicional. Disse a ministra: “Foi feita agora uma pesquisa, já dei ciência à ministra Rosa, em todos os tribunais constitucionais onde há mulheres, o número de vezes em que as mulheres são aparteadas é 18 vezes maior do que entre os ministros… E a ministra Sotomayor [da Suprema Corte americana] me perguntou: ‘Como é lá?’ Lá, em geral, eu e a ministra Rosa, não nos deixam falar, então nós não somos interrompidas”.
A pesquisa mencionada pela ministra Cármem Lúcia foi feita nos EUA por Tonja Jacobi e Dylan Schweers e chama-se Justice, Interrupted: The Effect of Gender, Ideology and Seniority at Supreme Court Oral Arguments, segundo o resumo da pesquisa[3]: “Este artigo estuda como os juízes competem para ter influência no argumento oral, examinando até que ponto os Juízes se interrompem. Também examinamos como os advogados interrompem os Juízes, contrariamente às regras da Corte. Descobrimos que as interações judiciais no argumento oral estão muito relacionadas ao gênero, sendo que as mulheres são interrompidas em taxas desproporcionais por seus colegas do sexo masculino, bem como por defensores do sexo masculino.[4]“
Portanto, concluiu-se que as magistradas são interrompidas por seus colegas, por promotores e defensores do sexo masculino, de forma desproporcional, o que evidencia uma discriminação em razão do seu gênero, uma desigualdade e um prejuízo para a sua liderança e o desenvolvimento dos seus argumentos. A desigualdade persiste em todo o mundo. Uma pesquisa recente da União Interparlamentar mostra que 79,1% dos parlamentares do mundo são homens. Entre os chefes do Executivo existe também um desiquilíbrio nítido. Muitos países, como França, Japão e China, nunca tiveram uma chefe de governo mulher. Claro que existem países desenvolvidos que fogem a esse padrão de desigualdade de gênero e discriminação. Em 2012, a Noruega, a Finlândia e a Islândia tinham pelo menos metade de seus ministérios ocupados por mulheres. Atualmente, essa é uma tendência também na França e no Canadá. Esses também ocupam os primeiros lugares no ranking de igualdade de gênero. No Brasil, até alguns meses atrás, sequer tínhamos uma mulher ocupando um cargo de ministério. No parlamento brasileiro existem poucas representantes, e também não vislumbramos que essas consigam ter uma posição de comando, como presidente da Câmara ou do Senado[5]. Na Câmara dos Deputados, mulheres representam apenas 55 das 514 cadeiras — em torno de 10,7% do total de deputados; no Senado, 12 das 81 cadeiras são ocupadas por mulheres — 14, 8% do total de senadores.
Perceber a desigualdade entre homens e mulheres é fácil, mas modificá-la, não. Isso porque, por muitos anos, a mulher foi impedida de estudar, de trabalhar e mantida na esfera privada, como uma forma de aprisionamento e desrespeito aos seus direitos fundamentais. Atualmente, no Brasil, é permitida a presença da mulher na esfera pública; todavia este exercício da atividade pública ainda não é totalmente livre, conforme já argumentamos acima. Existem muitos passos a serem dados para a efetivação da igualdade entre homens e mulheres, conforme preconizada na Constituição Federal (artigo 5º).
O Brasil situa-se na 79ª posição no ranking de desigualdade entre homens e mulheres, de 144 países, tendo como indicadores a participação política, participação econômica e o acesso à educação (Global Gender Gap Report). Quanto à participação política, atingimos a constrangedora 84ª posição, atrás de países como Chile (39ª), Zimbábue (69ª) e Argentina (22ª)[6].
Rompendo com a desigualdade entre homens e mulheres, existem marcos jurídicos importantes, tanto na esfera internacional, com a Convenção Cedaw e a Convenção Belém do Pará, como na esfera nacional, com a Constituição Federal, que reconhece a igualdade entre homens e mulheres, e a lei de cotas para as candidaturas femininas.
A Convenção Cedaw, em seu artigo 7º, determina o seguinte: “Os Estados-parte tomarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na vida política e pública do país e, em particular, garantirão, em igualdade de condições os homens, o direito a: a) votar, em todas as eleições e referenda públicos e ser elegível para todos os órgãos cujos membros sejam objeto de eleições públicas; b) participar na formulação de políticas governamentais e na execução destas, e ocupar cargos públicos e exercer todas as funções públicas em todos os planos governamentais; c) participar em organizações e associações não governamentais que se ocupem da vida e política do país”.
O Comitê Cedaw, que fiscaliza o cumprimento da convenção, destaca que: “Lamenta que a persistência de atitudes e estereótipos patriarcais, bem como a falta de mecanismos para garantir a implementação de medidas especiais temporárias continuem a impedir a participação das mulheres no legislativo e em cargos de tomada de decisão nos âmbitos estadual e municipal da administração pública. Inquieta-se com a baixa representação das mulheres nas mais altas instâncias do Judiciário e nas posições de alta gestão no setor privado, apesar do número crescente de mulheres seguindo carreira no judiciário, assim como participando do mercado de trabalho”.
A ONU Mulheres Brasil ressalta que o 5º objetivo do desenvolvimento sustentável consiste na igualdade de gênero: “Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública e adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis são algumas das metas globais do Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 – Igualdade de Gênero”[7].
Os desafios pendentes, todavia, são inúmeros. O fato de o governo brasileiro ter ratificado a Convenção Cedaw faz com que o país tenha o dever de adotar medidas para garantir a participação plena e efetiva das mulheres, bem como a igualdade de gênero, mas não apenas a igualdade formal, mas, sim, a igualdade material. Somente assim será alcançado o quinto objetivo do milênio, ou seja, a igualdade de gênero.
O respeito aos princípios da igualdade e da não discriminação representa a direção do longo caminho a ser seguido. Enquanto essa plenitude direitos não é alcançada, e a Convenção Cedaw não é inteiramente respeitada pelo Estado brasileiro, não apenas respeitem a nossa voz, como também não nos interrompam!
Fonte: Conjur