“No começo de Tristes Tropiques, Claude Lévi-Strauss descreve uma aldeia depois da partida dos homens para caçar: não havia mais ninguém, diz ele, exceto as mulheres e as crianças.” (Michelle Perrot)
Por: Carolina Santana
Em muitas sociedades a invisibilidade e o silêncio das mulheres parece fazer parte da ordem natural das coisas. Ao ouvir essa expressão, porém, sobre a ordem natural das coisas, é sempre bom desconfiar. Muito do que se diz ser natural é, na verdade, culturalmente construído. O “lugar” das mulheres em nossa sociedade e nas histórias que contamos é uma dessas coisas. Não há nada de natural no fato de que os homens sejam pontuados como protagonistas dos fatos.
No mundo do indigenismo não é diferente. Nem mesmo no mundo indígena, mas essa reflexão deixo às mulheres indígenas, que magistralmente falam por si. Sobre aquele, porém, sendo meu lugar de fala, enquanto mulher e enquanto indigenista, sinto que me cabe quebrar o silencio das fontes e encontrar as mulheres que, por diversas razões, ficaram relegadas às reticências e à imensidão do não dito.
Recentemente recebi da querida Beatriz Matos o link de um curta metragem. Conhecedora de meu enorme interesse em resgatar a memória das mulheres indigenistas, Beatriz enviou-me o filme O Segredo de Abigail, impactando-me profundamente. Em todos os livros que li sobre (e de) indigenistas os relatos sobre as mulheres, quando não invisíveis, relegam-nas a um segundo plano, como coadjuvantes, esposas e ajudantes. Isso se deve em muito pelo fato de que elas próprias, as indigenistas, pouco escreveram sobre si. A historiadora Michelle Perrot, especialista em História das Mulheres, chama atenção para o fato de que as mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos ou materiais. Quando produzem algo elas mesmas destroem, os apagam porque os julgam sem interesse. “Afinal elas são apenas mulheres, cuja vida não conta muito. Existe até um pudor feminino que se estende à memória. Uma desvalorização das mulheres por si mesmas. Um silêncio consubstancial à noção de honra”, diz a historiadora.
Dentre as tantas anotações de nomes que tenho mapeadas em um caderninho (e que, oxalá, virarão um livro de entrevistas), chegaram-me Abigail Lopes, por meio de um curta metragem, e Ananda Conde, por intermédio do relato do amigo Beto Marubo. Do pouco que sei sobre Abigail, posso mencionar que ela atuou entre os Xavantes da Serra do Roncador e sua presença foi essencial para o sucesso das relações estabelecidas durante as primeiras interações com os indígenas, em uma época em que a o Estado brasileiro optava pelo contato como forma de proteção dos indígenas. Abigail se arrependeu de tê-los contatado, demonstrando um pensamento de vanguarda naquilo que, somente em 1987, viria a ser estabelecido como política oficial do estado brasileiro: o não contato.
Abigail se foi antes mesmo que eu tivesse conhecimento de sua existência e, infelizmente, com ela se foi também todo o seu conhecimento de indigenista. A respeito de Ananda, ouvi histórias que me impressionaram. Em ocasiões em que era a única mulher da equipe, Ananda convenceu seus colegas a não abandonarem a Base da Funai diante da notícia de que madeireiros estariam vindo invadir o local. Ouvi ainda, que ela chegava a passar dias sozinha na Base, que dista 15 horas de barco da cidade mais próxima. Ananda, realizava expedições acompanhada de indígenas e caminhava por dias, sem auxílio de outros indigenistas. Até tiroteio ela teria enfrentado. Uma mulher e tanto! Uma mulher com “colhões”, diriam os que não conseguem dissociar atitudes de coragem de atributos masculinos.
O que Abigail e Ananda têm em comum além de serem indigenistas e de a elas se referirem como mulheres de indigenistas conhecidos? Trata-se do triste fato de que, mesmo tendo desenvolvido trabalhos brilhantes, são pouco conhecidas. A memória é resgatada, não raro, lembrando apenas dos homens que desempenharam o trabalho junto com elas. Antes de seguir, acho importante ressalvar que não se trata de pontuar a história das mulheres como mais importante que a dos homens – argumento comumente utilizado para deslegitimar o resgate das memórias femininas. Trata-se, antes, de buscar uma simetrização e fazer com que essas memórias tenham o mesmo peso. De Abigail à Ananda, ou seja, da década de 50 ao ano dois mil, há um sem número de mulheres indigenistas – e porque não dizer de sertanistas? – cuja história precisamos resgatar. Iniciemos, pois, essa travessia do silêncio à palavra. Com a palavra, Ananda, para contar um pouco de sua história e dar-nos um gostinho do que não caberia apenas nessas poucas linhas.
Ananda, como nasceu o seu interesse em trabalhar com povos isolados?
Eu terminei minha faculdade de jornalismo e sempre me interessei pela questão indígena e pela Amazônia. Queria sair de Brasília e poder fazer a diferença em algum lugar. Na verdade, queria aprender mais do que aprendi no meio acadêmico, buscar novas formas de conhecimento e de vida. Superar preconceitos.
Você sentiu falta de referências femininas em que você pudesse se espelhar, ou com quem você pudesse conversar, compartilhar angústias, tirar dúvidas?
Os contatos entre indigenistas e os índios isolados, historicamente, são episódios nos quais se destacam homens como protagonistas dessas relações. Contudo, mulheres indigenistas se sobressaíram como fundamentais no trabalho, mesmo estando como figuras invisíveis e não reconhecidas nesses campos de trabalho e nos relatos desses episódios da história do indigenismo. Abigail Lopes é um exemplo de mulher presente e decisiva no contato com os Xavantes, sendo expoente da geração de indigenistas da primeira metade do século XX. Nunca tive o prazer de conversar com mulheres indigenistas, além da Ana Paula, minha companheira de trabalho, e tinha um receio constante ao entrar numa roda de conversa, porque percebia que muita gente não dava muita atenção ao que eu falava, dando mais visibilidade aos relatos dos homens.
Você assistiu ao documentário sobre ela? Já sabia da sua existência?
Ela era chamada Tipizari, ou “a dona das panelas”, título que expõe como os índios Xavantes da Serra do Roncador (Goiás) a designavam como uma pessoa fundamental nessa relação de contato, que evidencia como as mulheres também fazem e fizeram parte desses momentos. Não conhecia a história dela, foi por indicação de um amigo.
A que você atribui essa invisibilidade?
A figura feminina está à mercê de um ambiente machista, onde os homens são os únicos reconhecidos ou únicos protagonistas na relação com os índios, fato esse inverídico. O machismo é tão presente, que nem mesmo as diretoras do documentário Abigail encontraram relatos de mulheres participantes dos contatos, expondo de forma errônea na sinopse do filme que “não se tem notícia até os dias de hoje de uma (outra) mulher”.
Quando se menciona exemplos de mulheres atuantes em campo, na proteção e identificação de povos indígenas isolados, nota-se descrença e desconhecimento de figuras femininas por parte do meio indigenista ou mesmo nos registros históricos e documentais, mesmo tendo inúmeras mulheres desempenhando trabalhos importantes nesse campo. Atualmente, a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC) é formada predominantemente por mulheres, a maioria com histórico de trabalho em campo, mas os que são ainda lembrados nos trabalhos junto à questão dos povos isolados são os indigenistas homens, frequentemente requisitados por meios de comunicação ou lembrados em documentários, como se não houvesse a figura feminina presente nesses trabalhos de campo.
A história de Abigail Lopes é a parte da história do indigenismo e, mesmo sendo uma expoente, a indigenista ficou esquecida por um tempo, quando foi encontrada vivendo solitária “em uma casa labiríntica na periferia do Rio de Janeiro, que escondia um terreiro de Candomblé em seu interior”, como relata o documentário. Mesmo sendo o destaque do documentário, Abigail sempre é lembrada ou mencionada como mulher de Chico Meireles, reconhecido indigenista, como se fosse apenas uma sombra da figura masculina de seu companheiro. “Muito tempo antes, Abigail, até então sem qualquer educação formal, resolvera deixar os Xavantes e vir para o Rio de Janeiro para colocar as filhas e filho na escola e se juntar a Chico Meireles. Descobre, então, que ele tem outra família, considerada a oficial.”, segundo a resenha do documentário.
Uma vez perguntei a um amigo sertanista se ele via problema em mulheres participando das expedições. Ele me respondeu que o mais complicado é na hora do banho, pois na mata não se pode tomar banho sozinho. Então eu disse a ele que se tiver duas mulheres ou mais na expedição esse problema está resolvido. Ele riu. Atualmente somos muitas mulheres indigenistas trabalhando em campo, porém no trabalho com os povos isolados e de recente contato ainda somos uma minoria espantosa. Por que você acha que isso acontece?
Atualmente, várias mulheres são destaques nos trabalhos relacionados aos povos indígenas isolados e de recente contato, mesmo não sendo devidamente reconhecidas. Em 2015, no contato com os Korubo, havia uma enfermeira do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) chamada Luziene, que desempenhou papel fundamental. Segundo conversas que tive com amigos, enquanto a equipe, que era formada basicamente por homens, se apresentava muito nervosa e apreensiva na ocasião, Luziane manteve tranquilidade, equilíbrio e serenidade, apesar do medo que revelava ter.
O reconhecimento do meu trabalho veio mais do lado indígena, que me respeitava e me requisitava como conselheira. E com o tempo, lutando contra o machismo, passei a ter o respeito local, que sempre era colocado em jogo. Eu tinha que ser dura comigo e com os outros, como mecanismo de defesa, construindo uma imagem militar e masculina como armadura. Eu não podia ser vista sozinha com algum homem em campo, ou conversando com algum indígena com uma proximidade física, que logo vinham os adjetivos pejorativos que tentam desmerecer minha imagem.
No final, eu e muitas indigenistas somos como Abigail, lembradas como mulheres de fulanos ou que trabalham com ciclanos, como se fossemos a sombra da figura masculina. E hoje, longe do indigenismo, sei que os homens que trabalhavam comigo são os únicos reconhecidos. É como se nenhuma mulher tivesse passado por lá, onde habitei e trabalhei.
De fato, em minha pesquisa pela história das mulheres indigenistas eu preciso insistir que quero nomes de mulheres, caso contrário só mencionam homens, ou dizem “tem aquela morena/loira que trabalhou com fulano… mas não me lembro do nome dela”. Acho isso curioso e o seu depoimento reforça o que tenho visto em minha pesquisa. Você quer mencionar outras mulheres do nosso meio que gostaria que fossem lembradas?
Existem inúmeros exemplos que não caberiam em texto, de mulheres fortes que ocuparam posições influentes e contribuíram determinantemente para a política indigenista, como Isa Pacheco e seu papel decisivo na articulação da demarcação da Terra Indígena Yanomami, Auxiliadora Leão, determinante para a demarcação de várias terras indígenas. As mulheres indígenas que também são o exemplo de força e determinação da causa indígena, como Angela Kaxuyana e Sonia Bone Guajajara, que lutam com todas as forças e por todos os cantos, como porta-vozes da causa indígena; Tuíra Kayapó, que se tornou um ícone ao dar uma “facãozada” em um engenheiro da Eletronorte. São tantas outras, que precisaria de um grande livro para citar tamanha competência e presença.