Por Giulliana Bianconi*
Não faz muito tempo, dez anos apenas, o Brasil começou a produzir dados oficiais sobre violência doméstica. É o mesmo tempo de vigência da Lei Maria da Penha, e isso não é mera coincidência. A lei que foi definida como “um marco”, “revolucionária” e “muito importante” por diferentes profissionais do judiciário e pesquisadores ouvidos no último mês pela Gênero e Número mudou a forma como se enfrenta a violência doméstica no país. Na Constituição e no Código Penal estão os mecanismos legais para proteger a vítima e também para punir o agressor, embora nem sempre isso aconteça na prática. Esta seleção de cinco dados e fatos explica parte do que vem acontecendo desde 2006, quando Maria da Penha passou a ser nome na legislação brasileira.
1. A violência contra a mulher ainda cresce, mas poderia ser até 10% maior sem a Lei Maria da Penha
Os índices de violência contra a mulher ainda são estruturados, no mundo inteiro, somente a partir de números de óbitos, e por isso o principal indicador é o crime letal. Um dos estudos mais disseminados e aceitos por pesquisadores brasileiros é o Mapa da Violência, que em 2015 mostrou que a taxa de crescimento de mortes de mulheres desde 2006, ano de aprovação da Lei Maria da Penha, vem desacelerando. No período anterior à lei, o crescimento da taxa de homicídio era 7,6% ao ano. Depois, passa a ser de 2,6% ao ano, até 2013, limite da pesquisa. Um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicado em 2015 reforça a tese da efetividade da lei, comparando números de mortes de homens e mulheres em residência, e indicando uma queda no número relacionado a elas. Apesar de a lei não ter como foco o homicídio de mulheres, já é aceito o argumento de que a morte não raramente é a última consequência de um ciclo de violência que inclui outros tipos de agressões, como as psicológica e física. O fato de o agressor ser, em 90% dos crimes ocorridos em casa, conhecido da vítima, também reforça o componente de gênero na violência.
2. Crimes listados na Lei Maria da Penha crescem em denúncia, e relatos de cárcere privado de mulheres já são 5% no Disque-180
Depois da Lei Maria da Penha, alguns instrumentos de prevenção e proteção à mulher foram implementados, como a linha 180, que funciona desde 2006 para orientar mulheres em situação de risco ou as vítimas de agressão por homens. Embora desde sua criação o serviço venha registrando, ano a ano, mais relatos de violência doméstica (que inclui agressões físicas, psicológicas, sexuais e patrimoniais) do que qualquer outro tipo de violação, o canal é aberto para quaisquer denúncias que representem violência de gênero. O crime que mais cresce em relatos em termos percentuais, de acordo com o balanço anual do Ligue 180 e com a análise de dados que a Gênero e Número fez a partir da base completa de tipos de relatos dos anos de 2014 e 2015, é o cárcere privado, embora isso não signifique necessariamente crescimento de ocorrências. “A gente não crê que essas coisas aconteçam, mas são mais comuns do que pensa a maior parte da população. Eu mesma, enquanto fiz parte da rede de atendimento à mulher em Porto Velho (RO) no Centro de Referência Especializado em Assistência Social, vi mulher sair de casa, em fuga, enquanto o marido saiu para pescar. Esse caso foi um em que prestamos assistência para que ela pudesse sair da cidade em segurança”, conta Betânia Assis, adjunta da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. “E há também o mito de que isso só acontece com mulheres pobres. Não é verdade”, observa ela.
3. Número de presos por violência doméstica no Brasil cresce a cada censo prisional, e é de pelo menos 2.600
Se o reconhecimento da importância da Lei Maria da Penha é um consenso, a sua face punitiva divide opiniões. Para além da medida protetiva de urgência – uma inovação que a lei trouxe e que vem sendo largamente usufruída pelas mulheres em situação de risco -, há a possibilidade de aplicação de pena de reclusão (de até três anos) aos agressores. Há juristas que questionam a eficácia dessa medida, e alegam que medidas socioeducativas são o caminho adequado para “recuperar” o homem que cometeu violência doméstica, mas outra leva de profissionais responde que além de necessária a reclusão deveria ser mais longa. “As vítimas muitas vezes nem denunciam porque sabem que, se for mesmo condenado e preso, o homem ficará lá pouco tempo, e na saída pode querer se vingar”, afirma a promotora de justiça de São Paulo Valéria Scarance . Em maio de 2015, segundo dados do Censo Prisional disponibilizado pelo Ministério da Justiça, os homens presos, em todo o Brasil, somavam 2.614. Em 2015, de acordo com a mesma fonte, eles eram 2.439.
4. Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher já são mais de 100 no Brasil
Esses juizados sequer existiam antes. A criação foi determinada na Lei Maria da Penha, para que casos de violência doméstica não fossem mais julgados nos juizados especiais criminais, onde a pena aplicada poderia até ser convertida em doação de cesta básica. Além disso, as mulheres antes não conseguiam encaminhar questões de família (separação, pensão, guarda de filho). Para isso, tinham que ingressar com outro processo na vara da família. Hoje, os formulários utilizados para coleta de dados nos Juizados têm a mesma estrutura dos que são utilizados nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM). Mas nem tudo é eficiência no combate ao enfrentamento. Como mostra estudo do Observatório da Lei Maria da Penha, iniciativa da Universidade Federal da Bahia, têm sido recorrentes casos de acúmulo de processos que terminam na prescrição do crime, já que a resposta da Justiça é lenta onde não há equipe suficiente para atender à demanda. “Mesmo que a criação dessas instâncias seja importante para a aplicação integral da Lei Maria da Penha, é preciso também investir esforços políticos e financeiros para a criação de outros serviços, e para sua integração em redes”, avalia a coordenadora de acesso à justiça da ONU Mulheres no Brasil, Wânia Pasinato.
5. Órgãos que formulam e coordenam políticas para mulheres crescem pelo menos 80% desde 2006, mas falta uniformidade e alcance territorial
Na esteira da Lei Maria da Penha veio também o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência, em 2011, que trouxe a discussão sobre ser imprescindível a existência de Organismos de Políticas para Mulheres – órgãos que formulam, monitoram e coordenam políticas, representados por Secretarias e Coordenadorias da Mulher. O IPEA mostrou, em estudo recente, que a efetividade da Lei Maria da Penha depende, dentre outras coisas, do seu grau de institucionalização. Assim, se não há institucionalização uniforme nos territórios, com esses organismos presentes em todos os estados ou municípios, não vai haver também a mesma efetividade da lei. Os dados mais recentes apontam para a existência de 583 organismos espalhados pelo Brasil. Até 2006, ano em que a Lei Maria da Penha entra em vigor, o número máximo de organismos criados pelos governos estaduais e municipais em um ano havia sido 48, em 2005. O número total de organismos era 68. A partir de 2006, o número de novos organismos criados a cada ano cresce, e chega a 126 em 2009, quando teve seu ápice. Entre 2006 e 2013, período analisado pela ONU, foram 343 novos organismos.
Fonte: Gênero e Número