A violência fatal atingiu mais de 50 mil brasileiras entre 2000 e 2010. Os homicídios que ocorrem em residências vitimaram 15% dos homens. Essa porcentagem sobe para 40% quando se trata de mulheres.
“Faca, peixeira, canivete. Espingarda, revólver. Socos, pontapés. Garrafa de vidro, fio elétrico, martelo, pedra, cabo de vassoura, botas, vara de pescar. Asfixia, veneno. Espancamento, empalamento. Emboscada, ataques pelas costas, tiros à queima-roupa. Cárcere privado, violência sexual, desfiguração. Quando se volta o olhar para a maneira pela qual foi infligida a violência, chamam a atenção a diversidade dos instrumentos usados no cometimento do crime e a imposição de sofrimento às vítimas anteriormente à execução.”
O trecho acima – extraído da pesquisa A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil – mostra o excesso de agressividade em situações de homicídios contra mulheres por questões de gênero. A pesquisa foi divulgada pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça (MJ), por meio do Centro de Estudos da Justiça (Cejus), e é fruto do projeto Fortalecimento do acesso à Justiça no Brasil, parceria entre a SRJ e o PNUD. O lançamento aconteceu no auditório do Ministério na última quinta-feira 30.
Participaram do debate a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STF), Carmem Lúcia; a ministra da Secretaria de Política para as Mulheres, Eleonora Menicucci; a senadora Vanessa Grazziotin; a pesquisadora e professora da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, Marta Machado; e a pesquisadora da ONU Mulheres Vânia Pasinato.
A pesquisadora Marta Machado apresentou o estudo, dividido em três partes. Na primeira, é abordada a inserção do Brasil no sistema internacional de proteção de direitos humanos. Em seguida, é realizada comparação da regulação do feminicídio nos países latino-americanos. Na última parte, são trazidos os resultados da pesquisa qualitativa e empírica que analisou 34 casos de violência fatal praticada contra mulheres em cinco estados brasileiros: Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará e Paraná.
Um dos aspectos que chamam a atenção nos capítulos que comparam o Brasil com outros países e mostra a posição do país frente ao tema nos acordos internacionais de direitos humanos é o fato de o Brasil ser o único país da América Latina que ratificou ou aderiu a todos os 14 tratados internacionais universais, e regionais, genéricos ou específicos, que visam à proteção dos direitos das mulheres na esfera internacional.
Dos 34 casos de feminicídio analisados pela pesquisa, 2/3 deles foram registrados após a Lei Maria da Penha e 1/3 antes da sanção da lei em 2006. Segundo a ponto-focal de gênero do PNUD Brasil, Juliana Wenceslau, uma das questões abordadas durante o debate de lançamento foi a qualidade da legislação brasileira para o tema, por meio da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e da recente Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015). A ministra do STF, por sua vez, ressaltou que a qualidade da legislação é boa, o problema é a aplicação das leis.
Os pesquisadores buscaram verificar como a Lei Maria da Penha vem sendo aplicada nos julgamentos e também “entender como se deu o processo de julgamento, quais foram os argumentos utilizados pela acusação e pela defesa, como o tribunal do júri se manifestou e, por meio dessa análise, verificar como as relações de gênero estavam embutidas no julgamento”, explica a oficial de Programa do PNUD, Moema Freire.
Uma das principais conclusões do estudo refere-se à necessidade de conscientização e sensibilização dos operadores de direito (juízes, defensores, promotores, advogados etc.) quanto ao tema. Surpreendeu também os pesquisadores verificar que, na maioria dos casos analisados, os crimes eram premeditados e não cometidos de forma passional, durante o auge de uma discussão, por exemplo. Verificou-se também que a violência doméstica já havia ocorrido outras vezes, sendo o feminicídio o último capítulo de uma história prévia, que poderia ter sido evitado caso as medidas preventivas, protetivas e restritivas previstas na Lei tivessem sido aplicadas.
A pesquisa também relata, com base nos casos estudados, que os crimes geralmente são caracterizados por três situações: no caso da mulher querer se separar; quando a mulher se encontra em um processo de emancipação econômica; e quando o companheiro acredita que a mulher não o obedece.
Conforme trecho da pesquisa, muitas vezes “as explicações para os homicídios de mulheres tenderam na maior parte dos casos para a mobilização de construções arquetípicas da figura feminina e masculina, que se alternavam conforme o ponto de vista, mas que carregavam individualmente a responsabilidade pelo ato. Ora se tinha a mulher `boa mãe e esposa’, que enfrentou um homem patologizado, agressivo, alcoolizado e repulsivo; ora a mulher devassa, provocadora, fora dos padrões sociais esperados, cuja conduta provocou a agressão do homem, bom marido e pai de família trabalhador. Em ambos os casos, o conflito é fruto de comportamentos individuais e não é compreendido no contexto estrutural da violência de gênero”.
Pensando a Justiça
O estudo sobre Feminicídio foi uma das pesquisas realizadas no âmbito do subprojeto Pensando a Justiça, que faz parte do projeto de Fortalecimento do Acesso à Justiça no Brasil. Por meio desse subprojeto, pretende-se estabelecer um diálogo entre a academia e o poder público, para que o conhecimento técnico das universidades brasileiras possa ser revestido em em insumos para formulação e aprimoramento de políticas públicas.
Para isso, por meio de editais, o Cejus, em parceria com o PNUD, seleciona instituições acadêmicas para elaborarem pesquisa sobre um tema específico. A pesquisa sobre o feminicídio foi parte do segundo edital, desde o início do projeto em 2014. Atualmente um edital está buscando instituições para realizar estudo sobre o Programa Justiça Comunitária, e novos editais devem ser lançados até o final deste ano.
Fonte/Foto: PNUD