Resultado de eleições diretas desconstrói a tese de baixo interesse feminino pela política
Com expressiva vantagem, as mulheres conquistaram a maioria das vagas nas eleições diretas para postos dos conselhos tutelares nas maiores cidades brasileiras – disputa realizada no início deste mês em todo o país.
Em São Paulo, capital com a maior rede de conselhos tutelares espalhados pelos bairros, 78% das 260 vagas foram conquistadas por mulheres. Em Curitiba, candidatas venceram 80% das disputas. Em Campo Grande, 88%. Entre as maiores capitais e o Distrito Federal, elas só não fizeram maioria em Belém, Manaus e Recife. Nos três casos, garantiram mais de 40% das cadeiras.
Vinculado à prefeitura, o conselho tutelar é um órgão autônomo encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Recebe denúncias, auxilia famílias em dificuldade, requisita ações junto ao Estado. Cada unidade é composta por cinco conselheiros titulares remunerados e cinco suplentes, todos escolhidos por meio de eleições diretas com voto facultativo.
As eleições deste ano foram marcadas por um inédito clima de polarização, segundo relatos de vários participantes, com engajamento em igrejas e mobilização de grupos progressistas. Muitos municípios registraram recorde de comparecimento. Em São Paulo foram 202.386 votantes, 35% a mais do que no pleito anterior. Os eleitos tomam posse em janeiro.
O bom resultado conquistado pelas mulheres contrasta com o que tradicionalmente ocorre nas eleições convencionais para os cargos do Legislativo e do Executivo nas diferentes esferas de poder. Em que pese os incentivos institucionais adotados nas últimas décadas, como cota para candidatas na composição de chapas e na distribuição dos recursos para campanha, a presença feminina nos postos mais altos de poder continua baixa.
Na Câmara dos Deputados, por exemplo, as mulheres ocupam hoje 92 das 513 cadeiras, 17,9% do total. No Senado, com 15 de 81 assentos, elas são 18,5%. Nos 26 Estados e no Distrito Federal há só duas governadoras: Fátima Bezerra (PT), do Rio Grande do Norte, e Raquel Lyra (PSDB), de Pernambuco.
“Os resultados das eleições nos conselhos tutelares confirmam que as mulheres se interessam, sim, por política”, diz a cientista política Beatriz Rodrigues Sanchez, professora da USP que pesquisa representação feminina nas esferas de poder. “Isso contradiz o senso comum segundo o qual o homem é mais afeito ao espaço público enquanto a mulher tende ao espaço privado. Também derruba a ideia de que mulher não vota em mulher”, completa.
Sanchez lista duas hipóteses para tentar explicar o contraste entre o bom desempenho das mulheres nas eleições dos conselhos tutelares e a baixa presença feminina em cargos eletivos do Legislativo e do Executivo.
A primeira é a de que os partidos políticos estejam funcionando como barreira para a ampliação da participação feminina nas esferas mais altas de poder.
Em quase todos os partidos, quase todos os cargos internos hierarquicamente importantes são ocupados por homens, lembra ela. “Como não há partidos nas disputas dos conselhos tutelares, essa barreira desaparece. Além disso, o financiamento de campanha não tem peso relevante nesse tipo de eleição.”
A segunda hipótese é cultural, o que ela chama de divisão sexual do trabalho. “As mulheres sempre foram mais responsabilizadas pelo cuidado com crianças, uma construção histórica. Então isso combina com a natureza dos conselhos tutelares”, explica.
Quem atua na instituição concorda. Reeleita para uma das vagas do Conselho Tutelar da Vila Maria, na zona norte de São Paulo, a conselheira Andréa Vieira Scarpa Ventura afirma que, por ser um trabalho de caráter social, “muitos acham que o conselho tem um aspecto mais feminino”.
Prestes a assumir seu terceiro mandato, ela defende que os grupos de cinco conselheiros de cada região deveriam ser compostos por uma mescla de homens e mulheres, o que nem sempre ocorre. “Há situações em que o pai chamado ao conselho chega mais agressivo quando percebe que será atendido por mulher. A gente não se intimida. Mas é visível que alguns homens se comportam de forma diferente quando precisam tratar com outro homem”, afirma. “E há situações em que a criança não vai se abrir com um homem, quando é caso de abuso, por exemplo.”
Ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o advogado Ariel de Castro Alves afirma que a presença maior de mulheres em conselhos tutelares é “tradicional”. Ocorre porque as candidaturas “não precisam passam por nenhum tipo de aprovação partidária”, diz.
Outro fator de influência, segundo ele, é que as eleições para os conselhos tutelares atraem principalmente pessoas que já atuam nas áreas da educação e da assistência social. São campos que sempre foram frequentados e ocupados majoritariamente por mulheres, afirma.