Ministra diz que proposta de Alexandre de Moraes para indenizar quem adquiriu terras demarcáveis ‘de boa fé’ ajuda a pacificar conflitos
Na expectativa da retomada do julgamento sobre o marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, defendeu em entrevista ao Valor o caminho do meio-termo apontado no voto do ministro Alexandre de Moraes.
Mesmo com o descontentamento de organizações indígenas, Guajajara diz que a posição de Moraes, que pode prevalecer no fim do julgamento, representa um ponto de equilíbrio na tentativa de pacificação dos conflitos.
“Eu continuo achando que o voto dele dá uma apaziguada na situação e evita a gente perder, né?”, declarou.
O ministro votou para derrubar a tese do marco temporal, mas argumentou que a União deveria indenizar quem, de boa-fé, comprou as terras a serem demarcadas. Hoje, só é permitida a indenização relativa às benfeitorias.
Moraes também defendeu em seu voto que, em caso de acordo, os indígenas poderiam receber outra área equivalente às tradicionalmente ocupadas.
A tese do marco temporal conta com apoio do agronegócio e estabelece que apenas as terras ocupadas por indígenas na época da promulgação da Constituição de 1988 podem ser demarcadas.
A ministra reconheceu problemas orçamentários relacionados às indenizações da chamada terra nua, mas garantiu que o governo tem compromisso. Ela disse que o ministério ainda não calculou o impacto que isso representaria.
“Olha, realmente tem um risco, porque vai onerar muito o orçamento da União”, respondeu. “Mas, agora, nessa gestão, tem também um interesse do presidente Lula para garantir um orçamento para pagar o que precisa ser pago em relação à regularização das terras indígenas.”
O julgamento foi interrompido após pedido de vista do ministro André Mendonça e deve ser retomado antes da aposentadoria da ministra Rosa Weber, que ocorre em outubro.
Na entrevista, a ministra falou sobre a aprovação na Câmara no início de junho do PL 490, que institui justamente o marco temporal e flexibiliza a legislação ambiental em territórios indígenas.
Ela reconhece que a situação no Senado, onde a matéria será apreciada agora, é difícil. “Eles têm a maioria, mas não vamos contar como derrota antes de acabar o jogo, né? Tem que esperar. Há ainda os diálogos.”
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, declarou em entrevistas que era necessário um ponto de equilíbrio. “Nesse projeto de lei, é muito difícil equilibrar os interesses. É quase impossível”, rebate a ministra.
Na entrevista, Guajajara fala sobre o esvaziamento das atribuições do ministério após aprovação no Congresso da MP da reestruturação da Esplanada e admite perda de autonomia.
“Inicialmente, a gente ficou um tanto preocupado considerando que essa etapa da demarcação aqui no ministério era uma das nossas prioridades”, reconheceu.
Mesmo reconhecendo que os processos no Ministério da Justiça se arrastam por mais tempo, diz que a retomada da demarcação não está ameaçada.
Por questões orçamentárias e possíveis problemas jurídicos, a ministra não garante a homologação dos oito territórios que ficaram de fora do pacote de demarcação anunciado pelo governo em abril.
A expectativa é de que apenas metade das áreas seja homologada neste ano. Até agosto, o governo fará o anúncio.
A seguir os principais pontos da entrevista.
Valor: O Ministério dos Povos Indígenas foi esvaziado após aprovação no Congresso da MP da reestruturação da Esplanada. A retomada da política de demarcação, prometida por Lula, está ameaçada?
Sônia Guajajara: Inicialmente, a gente ficou um tanto preocupado considerando que essa etapa da demarcação aqui no ministério era uma das nossas prioridades. Mas com a palavra do presidente Lula e também com o diálogo com o ministro da Justiça, Flávio Dino, entendemos que não vai paralisar nada.
Valor: Mas isso não significa uma perda de autonomia?
Guajajara: É claro que a retirada dessa atribuição do MPI tira um pouco essa autonomia em relação ao processo demarcatório no que cabe a nós. Mas temos tantas outras atribuições. A gente agora já está organizando a proteção territorial, a questão das políticas sociais e a implementação da Pengati [Política Nacional de Gestão Ambiental de Terras Indígenas]. A gente está trabalhando agora de uma forma muito mais ampla. Então, de fato, para este governo não compromete [a demarcação].
Valor: A senhora já disse que o Ministério da Justiça é muito lento e que os processos se arrastam por muito anos. Isso não é um fator prejudicial?
Guajajara: É. Eu temo que exista uma maior morosidade do que seria aqui. Mas nós estamos acompanhando e estamos com reuniões bem frequentes. E, agora, o ministério tá organizando também esse setor que vai cuidar dessa parte porque não tinha no Ministério da Justiça.
Valor: A senhora acha que o governo poderia ter feito uma melhor articulação no Congresso para preservar a atribuição central do ministério?
Guajajara: Nesse caso, não teria muito o que fazer. A proposta foi apresentada pelo governo dessa forma, com essa atribuição no Ministério dos Povos Indígenas. De cara, o relator já disse que, nesse sentido para demarcação de terras indígenas, ele não teria como manter porque estava tendo já essa pressão vindo das bancadas. Disse que a demarcação de terras indígenas não teria negociação. O relator já trouxe essa informação. Nós tentamos ainda conversar com muitos parlamentares. O próprio Arthur Lira [presidente da Câmara dos Deputados] respondeu para a deputada Célia Xacriabá quando ela foi procurar que demarcação de terra e o PL 490 ele não podia ajudar nada.
Valor: O que é que sobra do ministério e o que é que a senhora pretende fazer pra evitar o esvaziamento completo?
Guajajara: Nós estamos aqui com essa atribuição da proteção territorial, de fazer a desintrusão dos territórios. É outra parte importante. Estamos agora, inclusive, fazendo esse mapeamento de quantos territórios precisam ser desintrusados. Nós temos a gestão dos territórios. Além das políticas sociais e essa articulação direta com os outros ministérios.
Valor: No mês passado, a Câmara aprovou o PL 490, que institui a tese do marco temporal. Agora, é com o Senado. O que a senhora espera?
Guajajara: Na prática, não tem como evitar a tramitação desse projeto de lei no Senado até porque as bancadas ali estão totalmente interessadas nessa aprovação. Inclusive, já pediram para tentar colocar a aprovação de requerimento de urgência também para tramitar logo. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, conseguiu segurar e manter o trâmite normal passando pelas comissões. Então, foi isso que ele garantiu. Na Câmara, houve um atropelamento.
Valor: Pacheco falou da necessidade equilibrar os interesses. Há um caminho possível?
Guajajara: Nesse projeto de lei, é muito difícil equilibrar os interesses. É quase impossível. Esse projeto de lei ele é muito nocivo. Ele retrocede em muitos direitos conquistados. Ele foi ali no Congresso e até pela sociedade batizado como o PL do Marco Temporal, mas na real ele é muito mais perigoso. Ele traz mais 15 projetos de lei apensados. Resgata, por exemplo, a PEC 215, aquela que transfere a atribuição da demarcação de terras do Poder Executivo para o Legislativo. Ele resgata esse projeto de lei do arrendamento, que autoriza arrendamento das terras indígenas. Ele também flexibiliza toda a legislação ambiental facilitando o acesso e a exploração. Eu citei aqui alguns pontos só para mostrar o quanto que é difícil conciliar os interesses e equilibrar.
Valor: A derrota no Senado também já está na conta?
Guajajara: Eles têm a maioria, mas não vamos contar como derrota antes de acabar o jogo, né? Tem que esperar. Há ainda os diálogos. A gente segue conversando com senadores, mesmo com aqueles que são contrários.
Valor: Existe a possibilidade de o STF retomar o julgamento do marco temporal antes da votação no Senado. O que a senhora espera?
Guajajara: Estou bem otimista com o Supremo. Nós estamos acreditando que ali nós vamos ter votos suficientes para, como disse Alexandre de Moraes, enterrar de vez o marco temporal. Tem agora aquela orientação do próprio ministro Alexandre de Moraes que fala do pagamento das indenizações da terra nua. Hoje não é permitido. Hoje, só são indenizadas as benfeitorias. Ele traz isso como uma forma de tentar equilibrar.
Valor: A sra. comemorou o posicionamento de meio-termo do ministro, mas organizações indígenas já se colocaram contra. O entendimento dele pode ser um caminho?
Guajajara: Eu acho. Eu continuo achando que o voto dele dá uma apaziguada na situação e evita a gente perder, né? Acho que hoje o que está em jogo é o estabelecimento dessa data como uma das prerrogativas para identificar e reconhecer territórios indígenas. Isso precisa acabar.
Valor: A alegação é de que com a indenização da terra nua, como propõe o ministro, a demarcação seria inviabilizada por razão orçamentária. A sra. já fez esses cálculos?
Guajajara: Não temos esse dado ainda. A gente tinha um dado da Funai que também nem estava atualizado porque nos últimos quatro anos não se atualizou. A gente até pegou esse ano para poder ver agora como é que atualizamos com as desintrusões das terras já demarcadas. Então, agora, a gente tá aqui no ministério com essa decisão de fazer esse mapeamento dos territórios. Vamos fazer por Estado para entender qual a situação de todos os territórios em todo o Brasil.
Valor: Então, há um risco de paralisia das demarcações se a tese de Moraes prevalecer?
Guajajara: Olha, realmente tem um risco, porque vai onerar muito o orçamento da União. A gente sabe que tem um limite no orçamento público para essas questões. Mas, agora, nessa gestão, tem também um interesse do próprio planejamento e do presidente Lula para garantir um orçamento para pagar o que precisar ser pago em relação à regularização das terras indígenas.
Valor: O ministro também defende a possibilidade, se houver acordo, de a União oferecer outra área que não seja aquela tradicionalmente ocupada. A senhora concorda?
Guajajara: Olha, eu acho que é bem complexo. Tem situações que o povo pode aceitar fazer uma conversa, um diálogo e entender que pode aceitar outra área. Mas tem povos que não. Os Guarani Kaiowá, por exemplo, é uma das áreas mais conflituosas. Guarani Kaiowá é um povo que fala assim todo dia: ‘essa terra é minha. Eu morro aqui e dela não saio’. Eles falam isso. Há situações diversas. A gente não pode colocar tudo no mesmo pacote. Não tem como. A gente precisa identificar realmente uma a uma e fazer a conversa com o povo para entender o que pode ser feito.
Valor: Lula montou um governo bastante amplo. Há interesses diversos. O ministro da Agricultura, por exemplo, é a favor do marco temporal. A sra. sente pressão interna?
Guajajara: É, de fato, o governo Lula reúne muitos interesses. São interesses diversos. Cada um está brigando pelo seu. Eu vim para cá para cuidar da pauta indígena e avançar com os processos de demarcação, de garantia a segurança dos indígenas nos territórios, de proteger esses territórios, buscar as condições também de produção com as iniciativas indígenas. E eu estou fazendo isso. Quem está contra, está brigando pelo seu. E eu tô aqui também defendendo aquilo para que eu fui aqui nomeada.
Valor: A senhora se sente fortalecida pelo presidente em relação a possíveis embates internos?
Guajajara: Eu sinto hoje uma confiança muito grande no presidente Lula. Eu sinto muita verdade quando ele fala da proteção do meio ambiente, quando ele fala do respeito e da proteção também aos direitos dos povos indígenas. Ele tem falado publicamente aqui e fora do Brasil. Ele tem trazido a pauta indígena também para esse centro dessas discussões ambientais, climáticas. Eu sinto que ele tem tentando buscar esse equilíbrio para não prejudicar nenhum setor e tentar conciliar. Sei que tem momentos que vai ser difícil, vai ter que tomar alguma decisão. Às vezes, ele mesmo cobra de mim. “Soninha, cadê? Traz aí os processos. Eu quero assinar.” Então ele fala comigo assim quando a gente se encontra. Então, eu sei que, quanto mais ele fala da pauta indígena de forma positiva, mais reação ele tem dessa maioria ali que é contrária a essa pauta no Congresso. Mas ele não tem se esquivado. Então, eu estou bem confiante que ele vai dar essa autonomia e confiança para gente trabalhar.
Valor: O governo havia prometido a demarcação de 14 áreas. Em abril, o presidente só homologou seis.
Guajajara: Por mais que a gente tenha anunciado 14 processos que estavam com todos os estudos concluídos, ao final, quando a gente foi olhar um a um, de fato, nem todos tinham a documentação comprobatória completa. E estava na nossa responsabilidade aqui do MPI. A gente passou para Casa Civil, sentamos junto ali para analisar e a gente mesmo quis trazer mais documentos para ter um processo tranquilo e não ter questionamento depois. A gente trouxe aquelas seis que era o que, de fato, a gente podia garantir no momento. Como já é público, a gente não tinha esse orçamento garantido para fazer esse processo completo todo esse ano.
Valor: Então, o pacote inteiro que havia sido prometido não sai este ano?
Guajajara: Eu não posso te garantir agora que sairão as oito. Eu não posso, mas algumas dessas oito ainda a gente consegue assinar esse ano. Nós estamos trabalhando com o prazo de agosto para sair mais algumas assinatura.
Valor: Há áreas, como na Bahia e em Santa Catarina, em que os governos locais têm tentado segurar a demarcação. Na Bahia, o governador é do PT. Como a senhora tem conciliado isso?
Guajajara: Na Bahia, de fato, é muito sensível. A gente teve lá agora e vi que tem conflito permanente. Para os indígenas, a solução seria demarcar logo. Entregar a terra e acabar esses conflitos, mas há fazendeiros, donos de empreendimentos que estão ali e que também se colocam contrários e acham que essa não é a solução. O governador está tentando ainda fazer esse diálogo e ter um ambiente mais tranquilo para que a área seja demarcada.
Valor: E em Santa Catarina?
Guajajara: O caso de Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, tem sim o interesse direto do governador que já nos procurou aqui. Também [procurou] outros órgãos se colocando abertamente contrário à demarcação. Agora, é um ponto de vista puramente político. Morro dos Cavalos não tem tantos conflitos de interesses. Não tem tantas pessoas dentro da área. Não tem empreendimento lá próximo, né? Então é só uma área boa e bonita que eles acham que não tem que ser área indígena.
Valor: Passados seis meses, o governo conseguiu resolver a questão da terra indígena Yanomami?
Guajajara: A gente já avançou bastante nas várias áreas. Na questão do garimpo, é visível já a mudança ali. É visível o esvaziamento dos garimpeiros. Tem ainda uma parte de garimpeiro ali que nós estamos entendendo conforme dados da própria PF, que já não são mais só garimpeiros. Mas que são pessoas ligadas ao crime organizado que resistem em sair do território. Eles estão praticando atos de violência. Nós solicitamos a presença também e ação do Exército para dar esse apoio ali nessa retirada desses que ainda restam ali.
Valor: Mas conseguiram expulsar a maior parte dos invasores?
Guajajara: O dado da Polícia Federal já aponta que conseguimos retirar mais de 80% desses garimpeiros. Temos informação das lideranças indígenas alguns garimpeiros trabalham à noite e durante o dia ele se escondem.