“Eu levei as crianças do projeto social de futebol do qual faço parte para conhecer o Museu da seleção na CBF lá no Rio de Janeiro e, chegando lá, eles me perguntaram: ‘ué, mas você não foi jogadora da seleção? Então por que não tem nada seu aqui?’ Eu fiquei totalmente sem ter o que responder pra eles, fui pega de surpresa”. Esse depoimento foi dado pela ex-jogadora Fanta, que fez parte da primeira seleção brasileira de futebol, durante a abertura da exposição “Contra-Ataque: As mulheres do futebol”, nesta semana, no Museu do Futebol em São Paulo.
Além de Fanta, inúmeras mulheres que fizeram parte da história da modalidade estavam presentes no local: Leda Maria, Cenira, Juliana Cabral, Ita Maia, Daniela Alves, Emily Lima, Milene Domingues, Roseli de Belo, Aline Pellegrino eram algumas delas. A exposição conta com o patrocínio do Itau, é temporária e está aberta para visitação até dia 20 de outubro.
A ideia da mostra é resgatar a trajetória da modalidade que foi proibida no Brasil por um decreto-lei durante décadas. Além disso, o conteúdo passa pela luta das mulheres pelo direito ao jogo, a ter um uniforme adequado aos seus corpos, a presença na gestão esportiva, arbitragem, imprensa, comando técnico e nas arquibancadas.
Ita Maia vendo sua história contada no Museu do Futebol (Foto: Juliana Arreguy)
Objetos pessoais das atletas, como camisas de jogo, bolas, troféus e medalhas também estão expostos. Uma parede interativa também provoca o visitante por meio de um quizz, onde é preciso adivinhar qual jogadora corresponde a um breve descritivo sobre sua carreira.
Uma história que nunca foi contada finalmente ganha holofotes. Se na CBF, não há menção às pioneiras do nosso futebol, o Museu do Futebol fez questão de fazer esse reconhecimento na exposição que não poderia ter uma data mais propícia: foi inaugurada às vésperas de uma Copa do Mundo histórica para as mulheres.
Daniela Alfonsi, diretora do Museu do Futebol, declarou que essa exposição significou para a equipe uma coroação do processo iniciado em 2015. “Quando todos achavam que o que tínhamos feito no Museu já estaria esgotado, ou que o tema não teria apelo de visitação por que a Copa do Mundo Feminina teria seu brilho diminuído em razão da coincidência de datas com a Copa América masculina, conseguimos ter aquilo que seria impensável nos anos anteriores: estaríamos atendendo não apenas um desejo interno da equipe ou do público visitante, mas o interesse de um patrocinador”, valorizou o apoio dado pelo Itau.
Curadoria feminina
Toda a concepção do conteúdo foi feita por mulheres: Aira Bonfim, mestranda e pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Aline Pellegrino, ex-atleta e diretora de futebol feminino na Federação Paulista de Futebol, Lu Castro, jornalista e Profª Silvana Goellner, pesquisadora de Gênero e Educação Física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
No discurso de abertura, Aira fez uma paródia da famosa música “A Casa”, de Vinícius de Moraes, para evidenciar como ainda é oculta a história das mulheres no futebol. “Era uma casa muito engraçada, não tinha mulher, não tinha nada. Ninguém sabia quem era a Sissi porque sua foto não estava ali. Ninguém ouvia Leda Maria porque a TV aberta não transmitia. Troféu da Copa até que tinha, mas ninguém sabia onde ele residia. A história das manas é de resistência, é contra-ataque, é resiliência”.
E claro, apesar da modalidade ter somente cerca de 30 anos (desde que a lei foi revogada), não é fácil remontar essa história. O futebol foi proibido para mulheres de 1941 a 1979 e por isso os registros oficiais de qualquer partida feminina são escassos. Mas ainda assim, as mulheres não deixaram de jogar. “Apesar da proibição, as mulheres continuaram fazendo. Só que não podiam ser registradas suas conquistas, elas não poderiam aparecer oficialmente nos registros das federações. Isso deu uma invisibilidade na história das mulheres no esporte. Elas estavam, mas não aparecem. Só que o silêncio não significa ausência”, afirmou Silvana Goellner.
A jornalista Lu Castro tem se dedicado desde 2015 a preservar a memória e as contar histórias da modalidade. Ela já foi curadora de outras exposições e revela que a tarefa não é nada fácil. “É um trabalho complicado do ponto de vista de acervo porque não tem registro e nem onde buscar muitas coisas. As atletas são nossas maiores fontes, mas algumas não conseguem preservar seu acervo. A base do trabalho é pequisa e paciência para encontrar coisas. É bem complicado de fazer, mas eu gosto bastante”, afirmou às dibradoras.
Lu detalhou que o trabalho de curadoria foi muito intenso e dividido entre elas, e a emoção apareceu várias vezes durante o trabalho. “Trabalhar com memória é se emocionar o tempo inteiro, principalmente quando você consegue um acervo de alguém, uma bola, uma medalha, uma chuteira, um troféu”, contou.
Passado, presente e futuro
Naquele espaço estava concentrado as ex-jogadoras que passaram anos na invisibilidade e desconhecimento, o presente representado nas atletas de base, treinadores e dirigentes. E o futuro, que também ganhou destaque na exposição representado por Julia Rosado – mais conhecida como Juju Gol -, que aos nove anos, já se destaca em escolinhas de futebol, disputando campeonatos entre os meninos e estrelando campanhas publicitárias.
Leda Maria, ex-jogadora da Portuguesa, Vasco da Gama e seleção brasileira, veio do Rio de Janeiro ao lado de Fanta e Cenira para conferir de perto a exposição Contra-Ataque. Um dia após o evento, a pioneira revelou estar ainda “em estado em êxtase”. “Quando vi tudo aquilo fui às lágrimas, até porque eu não sou o tipo de jogadora que aparecia muito, nem dentro e nem fora de campo. Existiam outras jogadoras de mais destaque dentro da seleção e nos clubes, mas estar ali representada, não consigo nem descrever. Nunca imaginei que isso fosse acontecer na minha vida”, revelou ao dibradoras.
Leda Maria (Foto: Roberta Nina/dibradoras)A ex-meio campista fez questão de lembrar as diversas mulheres que, mesmo sem aparecerem naquele espaço, representam o futebol feminino do Brasil. “Eu estou ali representando minha geração, mas ao meu lado estão Fanta, Roseli, Pretinha, Cenira, Marcia Honório, Tafarel, Meg, Soró, Michael Jackson, Cebola, Fia, Marisa, Russa, Pelezinha, tenho um batalhão ao meu lado. A noite foi mágica, eu parecia uma criança entrando em um parque de diversão pela primeira vez.”
Em meio a tantas lembranças, Leda relembrou sua trajetória. “Cada foto que eu via, me enchia de alegria. E pensar que eu só tinha o dinheiro da passagem, às vezes um lanche e atravessava o Rio de Janeiro por duas horas pra jogar futebol. Não me arrependo de nada do que eu fiz, tudo valeu a pena. Faria tudo novamente”, afirmou.
Além das ex-jogadoras, atletas sub-17 do Projeto em Campo e que atualmente estão nas categorias de base do Santos e do Corinthians também marcaram presença no Museu. Nicole Santos, de 17 anos, defende a equipe santista e, para ela, a experiência foi incrível. “Foi bom ver a história, passo a passo, sua evolução desde a sua proibição até o cenário de hoje, onde são feitos uniformes propriamente para a modalidade com as medidas certas e o conforto necessário”, destacou.
Sua companheira de clube, Isabelle Monteiro destacou a importância da exposição para o crescimento da modalidade. “Essa ação, como muitas outras, nos ajuda cada vez mais a combater o preconceito. Ver tudo aquilo, medalhas, uniformes e atletas que fizeram história só me fez acreditar que o futebol feminino está evoluindo cada vez mais”.
Sabrina Martins, da base do Corinthians, também destacou a importância de ver o protagonismo feminino no futebol. “Foi uma experiência incrível ter a oportunidade de conhecer a história de como era o futebol feminino antigamente e ter visto mulheres que se esforçaram para que o futebol feminino seja o que ele é hoje. Essa exposição no Museu demonstra que as mulheres podem alcançar a emancipação e ter um lugar importante na sociedade.”
Leda Maria espera que a valorização ao futebol feminino se estenda pós-Copa. “Penso que as transmissões na Globo vão alavancar a modalidade”, opinou. Mas também reforça a importância de destacar o pioneirismo das atletas que começaram a escrever essa história há muitos anos. “A CBF é responsável para que nossa valorização não aconteça de fato. Nunca tivemos por parte deles o reconhecimento que esperamos. No Museu do Futebol da CBF, no Rio de Janeiro, é ridículo perceber que não tenha um cantinho do futebol feminino. Nós temos duas medalhas em Mundiais (uma de bronze e uma de prata) e duas medalhas de prata em Olimpíadas. Não é qualquer coisa”.
E não é qualquer coisa mesmo, Leda. A história de vocês é enorme e não cabe em um cantinho apenas. Vocês merecem reconhecimento eternamente.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
Fonte: UOL