Apesar de ser visto como um pensamento único, o feminismo se divide em vários nichos, com visões diferentes. Um dos mais polêmicos é o pensamento radical, que cultiva posições críticas a vários pontos, entre eles não aceitar as mulheres trans como mulheres. “Nós recusamos a ideia de que ser mulher seja uma identidade subjetiva, ao invés de uma discriminação objetiva com base no sexo [biológico]”, explica Aline Rossi, estudiosa e ativista do tema e autora do blog Feminismo com Classe.
De acordo com ela, a ideia de que “qualquer um pode ser mulher” invalida a luta das mulheres cisgênero –que se identificam com o gênero designado no nascimento– que conquistaram direitos básicos e daquelas que ainda sofrem, ao redor do mundo, por não poderem votar, estudar, trabalhar, divorciar, entre outras coisas, porque são do sexo feminino.
A visão é rechaçada pelo movimento trans e também pelos outros núcleos do feminismo. Para entender os principais pontos de divergência e os argumentos, a reportagem ouviu Aline, representante do movimento radical, Lola Aronovich, professora de Literatura em Língua Inglesa na Universidade Federal do Ceará (UFC) e autora do blog feminista Escreva Lola Escreva, e Maitê Schneider, mulher trans, embaixadora da Rede Mulher Empreendedora (RME) e fundadora da consultoria Transempregos.
Confira o posicionamento de cada uma sobre os principais temas apontados pelo feminismo radical:
1. Machismo na infância
Arquivo Pessoal
Maitê Schneider em evento do Google sobre empreendedorismo trans, em São PauloImagem: Arquivo Pessoal
Feminista radical: o movimento defende que as mulheres cis tornam-se o maior alvo de comportamentos e padrões machistas desde o nascimento, que querem torná-las inferiores aos homens. “Radical significa ‘raiz’, que é justamente porque as teóricas que foram consideradas como feministas radicais estavam centradas não em apenas apontar as desigualdades que mulheres sofriam, mas principalmente em buscar a raiz dessa desigualdade para poder erradicá-la”, explica Aline.
Mulher trans: Maitê acredita que o sofrimento com o machismo estrutural é inerente a todas as pessoas, independentemente de gênero ou sexualidade. “Na infância, isso é ainda mais cruel, pois vem revestido de censura, bullying e até mesmo violências físicas. Engessamos, desde cedo, pessoas diversas papéis sociais únicos e praticamente imutáveis”.
Feminista: Lola concorda com Maitê: “Eu acredito que até homens cis sofrem com machismo na infância, porque não podem chorar, não podem demonstrar afeto, aprendem a resolver conflitos através da violência, e precisam provar sua masculinidade o tempo todo”.
2. Trans e o protagonismo do feminismo
Feminista radical: Segundo Aline, não existe uma guerra ou uma pregação de ódio a nenhum grupo da sociedade. No entanto, elas defendem que a luta trans não tem a ver com o feminismo. “Mulheres trans sofrem com o machismo e a homofobia nesta sociedade, sem dúvidas, e defendemos com unhas e dentes que nenhuma pessoa deve ser discriminada ou sofrer violências pela forma que se veste, se comporta, se apresenta, com quem se relaciona ou o que seja. Mas não é isso que faz de nós mulheres. Isso é apenas a consequência com a qual lidamos por termos nascido do sexo feminino”, diz a ativista.
Feminista: Lola defende que o feminismo deva ser discutido por toda a sociedade, e não apenas um grupo. “Para que o feminismo possa mudar o mundo, ele precisa abarcar a todos. Não vejo pessoas trans querendo roubar o protagonismo de ninguém. Vejo apenas que, como um grupo rotineiramente excluído, elas também querem ter lugar à mesa”.
Mulher trans: Maitê também acredita que definir o gênero apenas pela condição biológica é limitador e inútil para a causa. “Mulheres são tão diversas quanto o número de pessoas no planeta. São diversas e únicas. O protagonismo deve estar em pensarmos na melhor qualidade de vida e equidade social para todos os humanos”.
3. Ser mulher
Feminista Radical: ao nascer, uma menina já tem parte de seu destino imposto pela sociedade, como seguir o papel de dona do lar, usar roupas consideradas femininas, ser cuidadora, entre tantos outros comportamentos conhecidos como padrão de feminilidade. A adoção desses estigmas por mulheres trans é uma das maiores críticas do movimento.
Mulher Trans: Maitê diz que a busca de uma individualidade deveria ser o caminho ideal. Mas ressalta que o erro de algumas pessoas não pode ser caracterizado como o comportamento de um grupo. “Eu mesma, quando mais nova, agia desta maneira, cobrando das mulheres à minha volta um ‘ideal de feminino’ e me ‘autoflagelando’ em busca deste mesmo objetivo”, comenta.
Feminista: Lola acredita que a adoção desses padrões, em muitos casos, seja necessária para que a mulher trans seja respeitada. Ela utiliza a si mesma como exemplo: se deixar de utilizar salto alto e maquiagem, será criticada por não ser tão feminina, mas ainda assim será vista como mulher. “E é nesse ponto que eu reconheço que o privilégio cis existe. Já uma mulher trans que não seja ‘feminina’ terá sua identidade de gênero negada o tempo inteiro”, afirma.
4. Criminalização da transfobia
Feminista Radical: da forma que está sendo votado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a criminalização da transfobia é considerada nociva para a causa radical, pois, segundo Aline, gênero é algo subjetivo, com margem para diversas interpretações. “Todas as leis que penalizam crimes e condutas de discriminação têm uma definição fechada e concreta: racismo, com base na cor da pele ou etnia; sexismo, com base no sexo; homofobia e lesbofobia, com base na orientação sexual. O projeto de lei sobre transfobia, entretanto, assenta num conceito inteiramente subjetivo e aberto: gênero”.
Feminista: Lola discorda desse pensamento e acredita que toda trans deve ter respaldado o direito à segurança, de ser chamada pelo nome que se reconhece e ter acesso a estudo e emprego, algo que, na sua visão, só tem a ganhar com a criminalização da transfobia. “E o feminismo não pode se dar ao luxo de ser transfóbico. O feminismo deve ser uma luta contra todas as opressões, não só a opressão de gênero”, afirma.
Mulher Trans: Maitê acredita que se gênero realmente fosse algo subjetivo, não haveria transfobia, porque as pessoas não seriam separadas entre cis e trans. “Somente assim essa afirmativa poderia ser verdadeira. Enquanto a maior parte das pessoas acreditar em gênero e tudo o que vem agregado –papel social, orientação, identidade etc–, teremos transfobia, pois não há respeito pelo direito de ser das pessoas transgêneras”.
Fonte: UOL