Após ter imagens íntimas vazadas pelo ex-namorado, em 2006, a jornalista Rose Leonel, 46, perdeu o emprego, teve que mandar o filho de 12 anos morar com o pai no exterior e quase foi “linchada” em sua cidade, Maringá, no Paraná. “Ele me queimou”, diz ela. “É a clássica pornografia de revanche.”
(Folha de S. Paulo, 21/05/2017 – acesse no site de origem)
Em 2013, Leonel fundou a ONG Marias da Internet, que se dedica à orientação jurídica e apoio psicológico a mulheres em situações semelhantes. Seu nome batiza o Projeto de Lei 5.555/2013, em tramitação no Congresso Nacional, que altera a Lei Maria da Penha e criminaliza a divulgação de fotos e vídeos com cena de nudez ou ato sexual sem autorização.
Para ela, a divulgação desse material é um crime semelhante ao do estupro: “Quando a mulher é violentada, geralmente, ela é culpabilizada pela sociedade. E no crime de divulgação de imagem íntima não consensual ela também é”.
Eu fui vítima de um crime na internet há 11 anos. Meu ex-parceiro divulgou fotos íntimas minhas em 15 mil e-mails aqui na cidade [Maringá, interior do Paraná]. Ele fazia uma leva a cada semana. Era “Episódio Um”. Na outra semana, “Episódio Dois”. Ele foi me queimando viva.
Também gravou as fotos em CDs e distribuiu nos principais condomínios residenciais e no comércio da cidade. Quase fui linchada.
É a clássica pornografia de revanche, quando você termina um relacionamento e a pessoa não aceita. Ele falou que, se eu não ficasse com ele, iria me destruir.
Eu fiquei arrasada. Ele me queimou viva. Foi um processo torturante. Como se não bastasse, ele postou as fotos em todos os blogs de pornografia do Brasil e fora do país, na Holanda, em Portugal, EUA, Alemanha.
Foram quatro anos, expondo, postando, montando. Ele hackeou o meu e-mail como se fosse eu mesma soltando esse material. Tinha gente que mandava mensagem: “Você não vai fazer fotos novas para gente, não?”. Era como se eu estivesse me vendendo.
FILHOS
Aquele bandido não poupou nem os meus filhos. Ele chegou a colocar o celular do meu menino naquelas divulgações. Quando o levava para a escola, meu filho dizia: “Mamãe, me deixa um quarteirão antes da escola”. Era para as pessoas não descobrirem que eu era a mãe dele. Foi muito triste. Quando descobriram, ele começou a ter problemas. Ele brigava. Era uma reação para defender a honra da mãe.
Meu ex-marido veio da Europa e nós achamos por bem que meu filho fosse embora com ele para evitar uma tragédia. Ele iria crescer. Já pensou se quisesse agir com as próprias mãos? Ele poderia não suportar essa dor e querer fazer justiça.
Embora soubesse que era o melhor, a distância do meu filho foi o maior golpe que eu sofri nessa situação. Ele voltou apenas seis anos depois.
A minha filha ficou comigo. Ela era pequenininha, tinha 7 anos. Fiquei viúva no meu segundo casamento. Como o pai dela tinha falecido, nela ficou comigo, mas foi muito sofrimento. Era discriminada na escola. As mães falavam: “Não brinca com essa menina, porque a mãe dela não presta”.
Ela mudou de escola várias vezes. Eu me lembro até hoje de ela chorar muito e falar: “Mamãe, o que é que a gente fez para sofrer desse jeito? A gente não é culpada de nada. Eu não fiz nada”.
Você sofre de uma forma quando a dor te atinge, mas quando atinge o seu filho, essa dor é dobrada. Meus filhos tiveram de lidar com preconceito, com a malícia e com a crueldade das pessoas. Nós enfrentamos essa luta juntos. A vida deles nunca mais foi a mesma.
JUSTIÇA
Aquilo passou dos limites. Tenho um amigo que fala que eu fui para Chernobil [cidade ucraniana arrasada após acidente nuclear].
Então, desde o começo, eu falei: “Vou buscar justiça”. Entrei no Juizado de Pequenas Causas e não deu em nada. Meu advogado na época não tinha experiência. Meu ex pagou uma multa pecuniária de R$ 3.000, mas continuou cometendo o crime como se nada tivesse acontecido.
Um ano depois, tentei, então, entrar na justiça, mas em Maringá ninguém quis pegar a minha causa. Eu estava desacreditada. As pessoas pensavam que era eu mesma que estava me divulgando. E não tinha dinheiro. Fui mandada embora do meu trabalho. Eu era colunista no jornal da cidade.
Eu precisei buscar outro advogado em São Paulo. Consegui também o apoio de um perito digital. Houve busca e apreensão das máquinas dele [do ex-namorado]. Depois de um certo tempo, foram ouvidas as testemunhas e foi comprovado [que o ex era o responsável pelas divulgações]. Quando é crime digital, você consegue identificar o ID da pessoa [identificação do usuário da internet]. Conseguimos rastrear quando ele estava postando num site de pornografia na Alemanha. Foi pego que saiu da sala dele, o provedor que ele usou.
Há quatro anos, ele foi condenado na instância cível e criminal. Vai ter que pagar, porque não pagou ainda nenhum centavo, R$ 30 mil. Também foi condenado a um ano, 11 meses e 29 dias de reclusão. Mas ele não foi preso. Reverteu a pena em cestas básicas e trabalho comunitário.
MARIAS DA INTERNET
Assim que eu consegui a condenação, eu me senti forte o bastante para chamar as pessoas que trabalharam no meu caso e juntos fundarmos a ONG Marias da Internet.
No Brasil, não tinha uma instituição onde a mulher pudesse se orientar e encontrar o suporte para esse tipo de caso, que é muito específico.
Atualmente, a gente recebe de quatro a oito denúncias desse tipo de crime por mês. Do Brasil e de fora. Já atendemos mulheres da Grécia, Portugal e Equador. Em geral, são brasileiras. O veículo de difamação campeão é o Facebook, mas a gente tem percebido uma migração para o WhatsApp. As ferramentas e as facilidades para se cometer esse crime têm aumentado.
Nós fazemos os primeiros socorros, dando apoio psicológico. Eu digo: “Olha, eu já passei por isso. Calma, você vai conseguir”. Ela vem totalmente desesperada. As meninas têm falado que nós somos uma luz nessa escuridão da desinformação, do machismo, da discriminação e do preconceito. A vítima sofre um processo de exclusão social e de marginalização.
Existe uma similaridade entre a divulgação de imagem íntima não consensual com o crime de estupro. Porque quando a mulher é violentada, geralmente, ela é culpabilizada pela sociedade. E no crime de divulgação de imagem íntima não consensual ela também é.
Na própria justiça impera o machismo, a discriminação. A mulher chega nos corredores da delegacia e é maltratada. Os homens não entendem a dimensão do caso. Eu já ouvi disparates como: “Em briga de marido e mulher a gente não mete a colher”.
Muitas nem chegam a entrar na justiça, porque não há uma lei especifica ou ferramentas jurídicas para o sucesso da causa.
Mas, em 2013, o deputado João Arruda [PMDB-PR] ficou sabendo sobre o caso e nós começamos a desenhar a Lei Maria da Penha Digital, que agora ele quer batizar com o meu nome, Lei Rose Leonel. É uma lei que consegue categorizar esse crime e prevê uma punição exemplar. Prevê uma multa e uma reclusão de até três anos de prisão, que é inegociável. Não se negocia por cesta básica, nada. Se for aprovada no Senado nós teremos uma lei no Brasil.
É só o ponta-pé inicial. O crime na internet é uma ferida que fica sempre aberta. Infelizmente, as sequelas vão ser para o resto da vida. Por mais que se tire as imagens, uma hora ou outra alguém em algum lugar do mundo coloca de novo e isso viraliza. A internet é um lugar que você nunca mais vai conseguir limpar. É muito raro. Aliás, que eu saiba, é impossível.
Fonte: Agência Patrícia Galvão