“A Constituição Federal protege o ser humano já nascido. Vida humana, com personalidade jurídica, é fenômeno que ocorre entre o nascimento e a morte,” afirmou Ayres Britto, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), ao declarar-se favorável ao uso de células-tronco embrionárias em pesquisa, em 2008. Ele frisou: “não há pessoa humana embrionária, mas um embrião de pessoa humana.” Para a professora daFGV Direito SP, Eloísa Machado de Almeida, a decisão do STF é uma demonstração de que os tribunais brasileiros já se posicionaram pela descriminalização do aborto. Em entrevista, ela diz que a criminalização, com base em um código penal elaborado na década de 40, além de não compatível com a Constituição Federal de 1988, fere o direito humano mais elementar: a autonomia.
Catarinas: Muitos profissionais de saúde denunciam à polícia mulheres que chegam aos hospitais públicos em processo de abortamento. A criminalização causa uma insegurança jurídica?
Eloísa: É uma vergonha que profissionais de saúde, que deveriam estar à vanguarda da luta pelo direito ao aborto, se prestem a denunciar mulheres que chegam aos hospitais em abortamento ou sofrendo as consequências de um aborto inseguro. Isso é contra a ética profissional e contra a lei.
Catarinas: Qual o princípio mais importante do ordenamento jurídico e o que a criminalização do aborto representa diante dele?
Eloísa: A dignidade humana é central para os direitos humanos e é considerada um vetor axiológico para se interpretar o ordenamento jurídico. Isso significa dizer que o Direito deve ter como objetivo a realização do ser humano enquanto tal. Nesse sentido, a relação entre autonomia e dignidade é muito próxima, já que é através do exercício da autonomia que o ser humano pode realizar seus projetos e viver a vida da forma que considerar melhor. Uma série de direitos fundamentais decorre disso: as pessoas têm liberdade religiosa, para seguirem ou não a religião que quiserem; têm privacidade e intimidade; liberdade para escolher profissão, para se expressar, para votar, para se relacionar com quem desejarem. É evidente que não são liberdades plenas, mas elas só podem ser restritas se houver uma razão suficientemente forte para tanto. Quando algo é considerado crime, pretende-se, de certa forma, impedir que alguns atos sejam realizados. Por exemplo, o crime de homicídio tem por objetivo dizer que não é aceitável matar outras pessoas, que essa é uma liberdade que não existe, assim como ocorre com os crimes contra a honra, nos quais não há a liberdade de constranger ou submeter pessoas a situações indesejadas. Quando falamos do crime de aborto, há também este cálculo, onde seria inadmissível interromper uma gestação. Ocorre que no crime de aborto temos a total submissão da autonomia da mulher, que está na situação de gestante, a uma outra vida, apenas potencial, que é a do feto. Obrigar uma mulher a ter um filho é uma interferência desproporcional na autonomia das mulheres.
Catarinas: Há constitucionalidade na criminalização do aborto? A criminalização do aborto pelo código penal da década de 40 é coerente com a Constituição Federal de 1988?
Eloísa: Por se tratar de uma interferência desproporcional na autonomia das mulheres, o crime de aborto é inconstitucional. A dignidade humana fortalece a autonomia. Ao submeter uma mulher a uma gestação indesejada, viola-se a sua autonomia, considerando que a vida potencial do feto seria um valor que mereceria maior proteção. Entretanto, juridicamente se valoriza mais a vida vivida do que a vida potencial. Por isso, a autonomia da escolha da mulher deve ser preservada. Aborto não é crime, é um direito.
Catarinas: Mesmo contrariando orientações da ONU e da OMS, o Brasil mantém a criminalização do aborto e o dificulta até mesmo nos casos legais. O que esse desrespeito diz sobre o Brasil e os países com leis restritivas?
Eloísa: Mesmo com o movimento cada vez mais claro pelos direitos das mulheres e pelo direito ao aborto, o Brasil segue com leis restritivas – e pior – retrocedendo. Temos um legislativo notadamente conservador e fundamentalista, que bloqueia a agenda legislativa de proteção dos direitos das mulheres. Mesmo assim, aborto segue sendo um direito e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos têm sido cada vez mais claros a esse respeito.
Catarinas: O aborto é uma questão de saúde pública, ou antes de tudo, de autonomia da mulher?
Eloísa: O aborto é sobretudo um direito. Mas isso não significa que não seja, também, uma questão de saúde pública. Ao não ser reconhecido como um direito, o aborto acaba sendo realizado de forma insegura, o que contribui para a precarização da saúde das mulheres e aumento de mortalidade. Um argumento de princípios defende que o aborto é um direito, que é parte da autonomia da mulher. Um argumento prático diz que a descriminalização do aborto é a forma mais eficiente de preservar a vida de mulheres e de fetos: é importante ressaltar que em países que têm legalizado o aborto e instituído políticas públicas adequadas, não só há uma queda no número de mortes maternas – tendente a zero – como também há uma diminuição no número de abortos.
Catarinas: O que a negação desse direito quer dizer sobre a sociedade atual?
Eloísa: Uma medida que diminui a autonomia da mulher de forma tão abrupta compartilha da noção de que a mulher é um ser inferior, que deve ser controlado e que não pode realizar suas próprias escolhas.
Catarinas: A constituição federal protege aqueles com personalidade jurídica. Essa proteção se estende ao feto?
Eloísa: O conceito jurídico de personalidade preserva justamente a experiência humana: a vida vivida, de afetos. O julgamento do STF sobre a pesquisa com células tronco embrionárias (ADI 3510) reafirmou esse argumento: não se ignora a existência de vida, mas se protegem vidas de formas diferentes. As atuais hipóteses de aborto legal já compartilham desse argumento: a vida da mulher deve prevalecer sobre a vida ainda não vivida (vida potencial).
Catarinas: Pode-se dizer que a criminalização do aborto é parte da cultura do estupro?
Eloísa: A cultura do estupro e a criminalização do aborto compartilham da mesma raiz, do machismo, da ideia de que homens são superiores às mulheres. Ambos são formas de controle sobre o corpo da mulher e representam uma violência.
Fonte: Catarinas