Talvez não houvesse reportagem se esta não tivesse partido de um preconceito
*Esta é uma das investigações patrocinadas pelo Programa de Bolsas de Reportagem da Revista AzMina que você ajudou a tornar realidade. Leia a série completa aqui.
Nos últimos quatro meses, eu pensei sobre maternidade todos os dias. Não, eu não tenho filhos e nunca tive projeto de tê-los. Mas a produção da série de reportagens “Entrelaços – a maternidade sob um viés indígena” me fez mergulhar nesse mundo do melhor jeito que eu poderia esperar.
A jornada iniciou-se na aldeia do Amaral, dos Guarani Mbya, em Biguaçu, Santa Catarina, onde conheci a erveira Sonia Moreira e sua família. Eu estava procurando sua mãe, Dona Rosa Poty Dja, que já havia viajado para um evento na Chapada dos Veadeiros e não voltaria até o próximo mês.O jeito era ir atrás dela no evento – a Aldeia Multiétnica, do Encontro de Culturas da Chapada dos Veadeiros. Lá, encontrei não apenas Rosa, mas mulheres de sete etnias, com quem convivi por sete dias em uma imersão que até hoje não consegui entender totalmente.
Além do medo e ansiedade para fazer um bom trabalho, o menos preconceituoso possível, encarei a descoberta da claustrofobia de dormir em uma barraca. Quer saber como é viver entre a vontade de fazer algo que adicione à luta de um povo e o medo de errar? Vou te contar o que eu aprendi até agora com as indígenas sobre maternidade:
As culturas são plurais e estão em movimento
Para começar, não é uma coisa só. São 305 povos e 276 línguas conhecidas no Brasil, segundo o IBGE. Cada povo vai ter uma visão sobre a maternidade, um jeito de ser mãe, uma maneira de lidar com as crianças. E mais: cada mulher vai ter o seu próprio jeito de ser mãe, dentro de recortes diferenciados – sua posição social naquela aldeia ou comunidade, sua idade, suas relações familiares, sua relação consigo mesma.
E essa cultura também vai mudar, porque é isso que acontece com as culturas com o passar do tempo. A cultura da Grécia Antiga mudou, a cultura da Roma Antiga mudou durante o Império, a cultura brasileira mudou desde o “descobrimento” até hoje. E tem lados positivos e negativos sobre isso. Todo ser humano é único e isso inclui todo mundo que é humano. Os indígenas e os não-indígenas.
Mãe não é tudo igual. E mãe indígena não é tudo igual.
Inserir algo fora de contexto no seu cotidiano pode dar muito errado
Algo que funciona em uma cultura nem sempre vai funcionar em outra. Aliás, não existe nenhuma regra para isso. Quando eu estava na Aldeia Multiétnica, haviam dois banheiros turcos para nosso uso. Pra quem não conhece, é daqueles em que o vaso é no chão e você precisa agachar para fazer suas necessidades. Eis que alguém me fala que não gostava de usar porque nunca sabia se a sujeira ao redor do vaso era cocô de alguém que não tinha boa mira ou terra de algum sapato que pisou ali. Tentar transportar apenas um pedacinho de uma cultura para o contexto da outra não deu muito certo para aquela pessoa. Apesar das indígenas terem alguns procedimentos que dão certo pra elas com as crianças, nem sempre eles vão funcionar na minha cultura e situação.
A responsabilidade aumenta e o suporte também
Quando as crianças são consideradas filhos de todos, a responsabilidade de cada um é maior. Mas é maior também o apoio. Confiar em outras pessoas é um conforto e uma segurança que me deixariam mais tranquila como mãe. Porque tem coisas que eu faço muito bem e coisas que eu não sei fazer de jeito nenhum. Ter mais gente pra preencher essa lacuna seria um alívio.
Ciúme x compromisso – um aprendizado pra vida
A primeira vez que soube dessa divisão de cuidados entre as mães de uma mesma casa eu lembrei de um colega dizendo: se alguém vai brigar com meu filho, esse alguém sou eu. Eu pensava como eu ia me sentir se alguém chamasse a atenção de um filho meu. Se amamentasse meu filho no meu lugar… “Não dá pra dizer que não existe ciúme da mãe. Mas ela sabe que é importante que o filho dela vá para o mato com a avó, que seja alimentado pela tia”, me explicou Joziléia. O seu ciúme não pode estar acima do bem estar das crianças. E o melhor: você ganha esses momentos multiplicados, porque também vai poder dar de mamar para outros bebês, aumentando seus laços de amor. E aí você estende esse aprendizado de criar laços sem precisar prender para todas as relações da sua vida. Tem coisa mais linda?
Para pintar a criança sem borrar é só esperar ela dormir
É basicamente isso. Porque as pinturas corporais são feitas com uma mistura de jenipapo, água e carvão. E aí você tem que esperar secar senão borra tudo e você fica parecendo uma mancha ambulante. Para que as crianças não “se sujem” e não borrem a pintura, não precisa brigar, não precisa prometer doce, não precisa se estressar: é só pintar elas enquanto estão dormindo. Uma super lição de paciência!
A vida é cíclica
A natureza é cíclica. Tem estações, chuva e sol, dia e noite. A menstruação é chamada de tempo da lua – sim, a menstruação tem as mesmas fases da lua e deveria ocorrer em um período regular de um ciclo lunar. As gerações também fazem parte dos ciclos. Representam ciclos da vida – o feto, a criança, o adulto, o idoso. O mundo, o ser humano, a vida – tudo é cíclico. E quando a gente não respeita os ciclos, a gente tem cólica menstrual, o fluxo de sangue não é saudável, tem dificuldade de engravidar e fazer brotar mais vida na Terra. Em todos os sentidos.
Pra ser mãe não precisa ter filho biológico
A menina Kayapó devia ter no máximo quatro anos de idade. Ela vinha carregando um bebê que deve ter pouco mais de um ano. Ela carrega a criança para todos os lados, igual as mulheres mais velhas fazem. Ela lhe dá de comer e brinca com ele.
Daniela me conta que há um caso em uma aldeia Tapayuna de uma mulher que tem apenas um filho. É pouco para a realidade do local. Mas ela exerce maternidade cuidando das outras crianças da aldeia. Obedecer as tias para os guaranis é tão importante quanto obedecer a mãe. E às vezes, pedir conselho para as tias é até melhor.
Em geral, as indígenas que vivem em áreas demarcadas, onde a segurança alimentar e política é mais estável, vão querer ter mais filhos. Adotar também é algo mais “corriqueiro”, “usual”.
Adotando ou não, é possível experimentar a maternidade sem ter filhos biológicos.
Do que aprendi nessa jornada, é isso que posso contar. Talvez outra pessoa menos preconceituosa aprendesse outras coisas. Talvez não houvesse reportagem se esta não tivesse partido de um preconceito. Então eu me despeço com a esperança de ter feito um bom trabalho e agradecendo a todas as indígenas e não-indígenas que fizeram parte da rede de suporte nesse aprendizado.
Porque a mãe dessa série não sou eu, somos NÓS.
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Fonte: AZMina