Mais de três milhões, segundo a estimativa do site de dados “FiveThirtyEight”, em sua maioria mulheres, marcharam nos Estados Unidos no último sábado (21), dia seguinte à posse do presidente Donald Trump, em todo o país.
A principal manifestação, em Washington, contou com 485 mil pessoas, de acordo com a média feita pelo site entre o número de manifestantes divulgado pela organização e pelas forças de segurança pública da cidade.
Houve também um número expressivo de manifestantes em outras cidades, como Nova York e Chicago, e também pelo mundo. Já se falaem um dos maiores protestos da história dos Estados Unidos.
Três pesquisadoras do campo do gênero e das ciências sociais falaram ao Nexo sobre o que a Women’s March representa e quais seus possíveis impactos para a política americana.
- Miriam Grossi é brasileira, reside atualmente nos Estados Unidos e esteve na Women’s March de Nova York. É professora de Antropologia e Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora da Cátedra Dra. Ruth Cardoso na Universidade de Columbia, em Nova York
- Miriam Adelman é americana, reside no Brasil desde 1991. É professora da graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná e da pós-graduação em Sociologia e Estudos Literários da mesma universidade.
- Carmen Rial é brasileira, reside atualmente nos Estados Unidos e esteve na Women’s March de Nova York. É professora de Antropologia e Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora visitante na Universidade da Cidade de Nova York (Cuny)
Quais direitos estão em jogo
Os direitos sexuais e reprodutivos, que incluem o direito ao aborto e à contracepção, são apontados pelas pesquisadoras como uma das frentes mais ameaçadas no governo Trump. Nesta segunda (23), o presidente americano negou financiamento anual concedido pelo governo federal americano a ONGs internacionais que oferecem aborto seguro às mulheres nos EUA e no mundo, como a “Women on Web”.
“A tentativa de criminalizar de novo o aborto para que o Estado volte a ter direito sobre os corpos das mulheres está na agenda da direita desde os anos 1980”, diz Adelman.
“O aborto é o tema mais presente”, reitera Grossi. “Depois, a questão de saúde. O fim do Obamacare atinge diretamente as mulheres em situação de pobreza e vulnerabilidade social. É um programa que, na sua prática, atinge as mulheres que têm filhos que adoecem, e também são elas que cuidam dos idosos. Portanto, o fim dessa cobertura universal de saúde tem implicação direta nos direitos das mulheres”.
Os ataques à cidadania dos imigrantes também afetam particularmente as mulheres. “Elas são uma parcela muito significativa da força de trabalho imigrante, sobretudo no que a gente chama de cuidado. São elas que ocupam essas funções de limpeza, cuidado de velhos e crianças. A economia norte americana depende delas de forma muito significativa”, diz Miriam Grossi.
Questões como a da imigração ou do endividamento estudantil – jovens que fazem empréstimos para pagar a universidade e não conseguem pagá-los depois de formados – não são novas. Mas houve, no governo anterior, tentativas de integrar as parcelas vulneráveis da população em programas sociais, segundo Grossi.
Por último, a eleição de Trump põe em risco, para as pesquisadoras, os avanços feitos na sociedade americana na desconstrução de papéis tradicionais de gênero e de uma noção rígida de família.
“O próprio modelo de família e de relações de gênero que Trump exemplifica, a forma como ele põe em cena um modelo de família branquinho, ‘ideal’, com mulheres magras e arrumadas também foi criticado pelas mulheres na marcha. Vi um cartaz na marcha que dizia ‘Liberte a Melania [Trump, primeira-dama]’. Também é uma reflexão sobre esse lugar no qual as mulheres estão sendo recolocadas do ponto de vista da imagem pública desse governo”, diz Grossi.
“Esse modelo [de feminilidade] da Melania, que é muito parecido com o da Marcela Temer, é contra o modelo das mulheres reais, que são as mulheres que mesmo não se reconhecendo como feministas, precisam do feminismo no seu cotidiano, desde a possibilidade de ter um salário, trabalhar e ter autonomia, até outras conquistas”, diz Miriam Grossi.
Perspectivas
Adelman vê a marcha de Washington como um evento de “possibilidade global”. A energia mobilizada por lá deve, segundo ela, ser capitalizada ao redor do mundo para nutrir a reivindicação de direitos e barrar retrocessos.
“Essa tem sido considerada a maior manifestação dos últimos tempos. Em outras manifestações de massa como essa, o poder central não resistiu” diz Carmen Rial. “Na Guerra do Vietnã ou contra o Nixon, houve uma desestabilização do governo central. Trump tem algo a temer se isso realmente se replicar”.
Outra possível “saída” a ser buscada pelos americanos pode ser pela via institucional. O cineasta Michael Moore repetiu em seu discurso na marcha o telefone do Congresso americano, incentivando que cidadãos comuns ligassem diariamente para seus líderes, na tentativa de barrar a política de Trump. Ele também estimulou que as pessoas se inscrevam em algumas das várias instâncias participativas existentes na política americana.
A possibilidade de que a marcha desencadeie um “Tea Party de esquerda” também é mencionada por Rial como um dos cenários projetados pelos americanos atualmente. Quando Barack Obama venceu as eleições em 2008, os conservadores criaram um movimento – o “Tea Party” – fora do Partido Republicano, que radicalizava muitas das ideias do espectro conservador. “É um país dividido nesse momento, em uma configuração mais extrema, tanto na esquerda quanto na direita, do que se tinha no passado”, diz.
No dia da manifestação, Miriam Grossi relatou ter visto nas ruas de Nova York pessoas se organizando, desde cedo, em grupos para irem à manifestação. “A mobilização para a marcha já se deu de diferentes formas associativas, com diferentes comunidades se organizando para participar enquanto comunidades, não apenas enquanto indivíduos”. Essa mobilização comunitária, segundo ela, tem sido vista como estratégia para que o movimento não perca fôlego.
“As pessoas estão dispostas a novas mobilizações públicas em relação ao governo atual”, diz Grossi. A adesão e a continuidade da mobilização dependem, segundo ela, de como as manifestações, tendo o feminismo como eixo central, vão conseguir integrar as várias posições das mulheres na sociedade americana.
O desafio está em “como interpelar diferentes mulheres, inclusive aquelas que votaram no Trump – que são mulheres de um ponto de vista conservador – nessa perda de direitos essenciais. Isso atinge a todas as mulheres se ele [Trump] realmente for em frente nesse tipo de posição”, diz Grossi.
Fonte: Nexo