RESUMO Importante nome dos estudos de gênero e da teoria queer, a filósofa americana Judith Butler esteve pela primeira vez no Brasil no começo deste mês. Ela, que desenvolveu a ideia de gênero como uma performance que repete normas dominantes, fala em entrevista sobre direitos e nossa responsabilidade com o outro.
No último dia 9, em São Paulo, um grupo de cerca de dez pessoas protestava, em frente do Sesc Vila Mariana, contra a presença ali de uma filósofa americana, com cartazes que diziam frases como “Fora aberração de gênero” e “Cuidado! Querem impor a ideologia homossexual nas escolas”.
Em 1990, Judith Butler lançou o livro que seria um dos marcos do feminismo recente e que influenciou os estudos de gênero e a teoria queer –nome dado ao amplo campo para o qual o gênero, sexo e orientação sexual são construções sociais, e não determinações biológicas–, que ganhavam espaço nas universidades e centros de pesquisa desde os anos 1970 e que se fortaleceram na década de 90.
“Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade” [trad. Renato Aguiar, Civilização Brasileira, R$ 39, 238 págs.], que acaba de ser relançado no Brasil, se insere nos estudos pós-estruturalistas e questiona a busca de uma identidade para o sujeito do feminismo.
A partir da conhecida frase de Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo” –”Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”–, dos estudos de linguagem e da psicanálise, a hoje professora da Universidade da Califórnia em Berkeley questiona o aspecto binário –masculino ou feminino– do gênero e a ideia de que ele seja natural e biológico.
Visitando escritos como os de Michel Foucault –e sua reflexão sobre a hermafrodita Herculine Barbin–, Luce Irigaray, Monique Wittig, Lacan e Julia Kristeva, ela desenvolve o conceito de gênero como “performativo” –fabricado culturalmente, uma performance repetida e reencenada de normas e significados estabelecidos socialmente que se legitimam pela imitação de convenções dominantes.
Para subverter e evidenciar o caráter construído de noções como feminilidade e masculinidade, propõe práticas paródicas que rompam com categorias como sexo, gênero e sexualidade, mostrando que se referem a um original também artificial.
Desde então, Butler se dedica ao campo da ética no mundo contemporâneo, desenvolvendo reflexão sobre a precariedade do ser humano e sua necessidade do suporte do meio e do entorno social.
Até este ano, além de “Problemas de Gênero”, estava disponível no Brasil apenas “O Clamor de Antígona: Parentesco entre a Vida e a Morte” [trad. André Cechinel, editora UFSC, R$ 20, 128 págs.]. Nesse livro de 2000, ela imagina, a partir da peça de Sófocles, que, se o mito fundador da psicanálise fosse o de Antígona, e não o de Édipo, seria possível separar família e parentesco.
Talvez graças à sua primeira vinda ao Brasil, onde falou em Salvador, São José do Rio Preto e São Paulo, teve outros dois livros traduzidos. Em “Relatar a Si Mesmo: Crítica da Violência Ética” [trad. Rogério Bettoni, Autêntica, R$ 39,90, 200 págs.], de 2005, defende que somos constituídos pelos outros e evidencia a impossibilidade de um sujeito ético totalmente racional e transparente.
Já “Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto?” [trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha, Civilização Brasileira, R$ 39, 288 págs.], publicado nos EUA em 2009, reúne ensaios da filósofa que, a partir da guerra do Iraque, reflete sobre a existência de vidas que, por não serem consideradas vividas, não são lamentadas quando perdidas; vidas cuja violação não é problematizada.
Ao falar na capital paulista, no 1º Seminário Queer, promovido pela revista “Cult”, sobre vulnerabilidade, precariedade dos corpos, resistência para além do campo legal e mobilização, Butler disse que, caso os manifestantes tivessem entrado, talvez aprendessem alguma coisa. Na ocasião, ela também comentou a exclusão do Plano Municipal de Educação de menções a gênero e diversidade sexual, que qualificou como censura que “busca calar a discussão sobre o quão variado o gênero pode ser”.
Nesta entrevista, Butler comenta a abordagem de questões de gênero com jovens e crianças nas escolas, fala de movimentos sociais, entre eles a luta LGBTQI –sigla que inclui transgêneros, queer (ou pessoas de gênero fluído, que não se reconhecem nem no feminino nem no masculino) e intersexuais (pessoas que nascem sem características fisiológicas e físicas claras que determinem seu gênero, chamadas, no campo médico, de hermafroditas)–, e também da crise dos refugiados na Europa.
Folha – Como seu pensamento e seus escritos mudaram desde “Problemas de Gênero”?
Judith Butler – Eu mudo minhas visões e aprendo muito com meus críticos mais generosos. Eu acreditei numa coisa em certo momento e agora acredito em outras e de novo mudo minhas opiniões. Crio minhas teorias de forma nova a cada vez e, mesmo que determinados textos ressoem em outros, eles não seguem em linha reta.
“Problemas de Gênero” foi escrito em meio à epidemia de aids nos EUA, mas também estava relacionado a um atuante movimento político nas ruas, como o Act Up, Queer Nation, e a uma vibrante cena de bares gays e lésbicos na qual havia experimentação tanto quanto ao gênero como à sexualidade.
O movimento LGBT ainda não era “mainstream”, e os direitos ao casamento não eram o mais importante. Vivemos em outra época, eu mesma estou mais alerta a formas globais que a luta por direitos sexuais e de gênero tomou.
O movimento trans é forte e segue se fortalecendo. Os direitos ao casamento geraram uma comunidade marginalizada, que está experimentando outras formas de relacionamento e de práticas sexuais.
O trabalho sobre performatividade se desenvolveu em vários campos, e minha visão é uma em meio a tantas. Acho que estava preocupada, mesmo em “Problemas de Gênero”, com uma questão: que vidas merecem o luto?
Eu vi muitas vidas perdidas pela aids e muito frequentemente elas não eram devidamente reconhecidas e lamentadas. Mas agora estou ciente de [que essa questão atinge] outros grupos, o que inclui pessoas LGBTQ [lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e queer], pessoas alvejadas em guerra ou abandonadas pelas políticas de austeridade.
Como frisar o modo desigual com que se valorizam e choram diferentes vidas? Sinto que o valor de uma vida se deve em parte ao seu potencial de condição de luto. Continuo afirmando a política performativa, especialmente quando empreendida por grupos que buscam estabelecer e redefinir um sentido democrático de povo.
Em “Quadros de Guerra” você trata de como algumas vidas não têm esse direito ao luto. Mais do que a foto do menino sírio na praia turca recentemente, vemos todos os dias imagens das consequências da crise migratória na Europa. Que direitos negamos a essas pessoas?
Eu acho que aquela foto inquire sobre que relação temos com a criança morta. Somos responsáveis? Ou essa criança é problema dos outros? Alguns países estão muito felizes em aumentar sua riqueza e mandar que as dívidas sejam pagas, fechar suas fronteiras e insistir em sua “europeidade”. Mas qual é sua responsabilidade para com tantas pessoas que lutam para deixar zonas de guerra e a miséria econômica para entrar na riqueza da Europa? Em dado momento, todos teremos de saber que pertencemos uns aos outros e que há formas de pertencimento com claras implicações éticas e políticas que transcendem o Estado-nação. Então talvez se torne obrigatório abrir mão dos lucros do Primeiro Mundo a fim de produzir infraestrutura social para os que vivem em condições precárias.
Que obrigações temos para com outros humanos aos quais não nos ligamos formal ou legalmente?
Antes de responder, lembremos que leis internacionais estipulam obrigações para com a humanidade. Mas, mesmo havendo tribunais internacionais, seus julgamentos não têm o efeito compulsório das cortes nacionais. Uma decisão legal sem força policial não é a mesma que uma com força policial. Ainda que indivíduos possam ser julgados e presos como criminosos de guerra e por cometer crimes internacionais contra a humanidade, há limitações para o que cortes internacionais podem fazer.
A questão que me interessa é se obrigações legais têm de se fundamentar em obrigações pré-legais ou extralegais. Se perguntarmos por que devemos nos importar com refugiados em busca de abrigo e segurança em outro canto do mundo, talvez sejamos obrigados a questionar o que nos une a outras pessoas, inclusive as que não conhecemos e não conheceremos.
Se essa população em sofrimento não compartilha comigo uma língua, um território, um sistema legal, ainda assim tenho de reagir de modo a diminuir seu sofrimento? Acredito que estejamos unidos aos que não conhecemos e não conheceremos, e eles a nós, sem saber nossos nomes. Essa ligação anônima é crucial para a ideia de responsabilidade global.
Como remodelar nossa noção do que é o humano?
Acho que o humano está sendo remodelado o tempo todo pelas tecnologias, pelas guerras, pela mudança climática. Nossa capacidade de remodelar o humano emerge em meio a um processo histórico ao qual nós não demos origem. Acredito que agora se ache que a distinção humano/animal não é mais útil. E nossa dependência da tecnologia também está sendo amplamente compreendida como parte da condição humana.
O humano não pode ser humano sem o mundo objetivo e sem os suportes que tornam possível sua continuidade. Em minha opinião, a implicação do humano nos mundos objetivo e animal oferece uma maneira de pensar políticas do meio ambiente para além da presunção do antropocentrismo.
Como as novas lutas e conquistas de transgêneros e intersexuais têm influenciado seu trabalho?
Tenho tido discussões interessantes com ambos os grupos. Ativistas intersexuais têm visões variadas, e alguns estão furiosos com uma versão da teoria queer que questiona o binarismo homem-mulher. Acham importante ter uma designação clara de gênero, especialmente para crianças intersexuais que querem poder se identificar e serem reconhecidas entre seus pares. Da mesma forma, algumas pessoas transexuais argumentam que a teoria queer faz do gênero algo volitivo, e ao menos alguns dizem que seu sentimento de gênero pode ser tão profundamente consolidado a ponto de merecer ser chamado “inato”.
Para aqueles que argumentam nesse sentido, a teoria queer é orientada demais para uma escolha livre e uma construção social. Essas visões são importantes. Claro que há pessoas trans que contestam o binarismo homem-mulher. E existem intersexuais que pedem um terceiro gênero ou uma maneira de marcar seu status intersticial. Então não há visões únicas em nenhuma das comunidades.
Um ponto para o qual venho chamando atenção é que designação de gênero é algo que nos acontece. É uma interpelação a contragosto. E, nesse sentido, a construção social do gênero sempre começa de modo radicalmente involuntário. Pode-se debater quais aspectos do gênero são inatos ou adquiridos, mas é mais importante reconhecer o efeito involuntário da designação de gênero e a resistência profundamente consolidada [de alguns] a tal designação. Essa resistência pode ser crucial para a sobrevivência e conformar um preceito básico da identidade de alguém.
Eu aceito que algumas pessoas tenham um sentimento profundo de seu gênero e que isso deva ser respeitado. Eu não sei explicar esse sentimento profundo, mas ele existe para muitos. Pode ser uma limitação para minha análise eu pessoalmente não ter esse sentimento profundo de gênero. Pode ser que essa ausência seja o que motivou minha teoria.
Que fronteiras há entre feminismo, estudos de gênero e estudos queer?
Às vezes há tensões claras entre esses campos, mas em outras há formas tocantes de solidariedade. Sou a favor de produzir formas de solidariedade que prescindam de acordo. Não podemos ter um feminismo dedicado à justiça social sem comprometimento com a justiça social para pessoas trans. E não podemos ter estudos de gênero que não sejam baseados em feminismo e em perspectivas emergidas de estudos gays, lésbicos, intersex, bissexuais e trans. Essas pontes têm de ser construídas.
Como entender a construção de identidades trans e queer dentro da ideia de performatividade?
Às vezes ela funciona como teoria, às vezes não. Ela nunca quis explicar tudo. Acho, porém, que toda vez que colocamos reivindicações por direitos, ou insistimos em estar em público sem sermos molestados, feridos ou presos, usamos da performatividade. Não só dizemos quem somos mas “fazemos” quem somos e pedimos ao mundo que aceite. Eu diria que isso é performatividade.
Em sua conferência em São Paulo, você disse saber da exclusão do termo “gênero” e das discussões em torno dele no Plano Municipal de Educação. Também viu alguns manifestantes com cartazes contra a chamada “ideologia de gênero”. Por que temer gênero?
Meu entendimento é de que algumas pessoas temam que “gênero” signifique que não haja leis naturais que regulem a divisão entre sexos. Elas querem leis naturais para estabelecer a questão de gênero para elas. Se você nasce com um conjunto de características, você é uma garota, e você vai se tornar heterossexual e vai casar e não vai ter empregos que adequadamente pertencem aos homens.
Se essa sequência é culturalmente variável, então você pode nascer com um conjunto de características e vir a adquirir outros conjuntos. Ou pode ter seu gênero redesignado e se tornar homem, e pode ser hétero, gay, bi ou assexuado. Pode casar ou não, com alguém do mesmo gênero ou não. Você pode se divorciar, até diversas vezes. Você pode ser poliamoroso e ter vários parceiros.
Enquanto alguns entendem que vidas podem ter várias trajetórias de gênero e sexuais, os que temem gênero querem que haja só uma vida. E querem que ela seja fixada por Deus ou por lei natural. Todo o resto é caos amedrontador, e com frequência escolhem o ódio como forma de lidar com seus medos.
Como professores de crianças e adolescentes podem tratar a teoria e os estudos queer nas escolas?
A teoria queer sugere uma série de reflexões importantes aos jovens. Eis algumas: Como você sabe de que gênero você é? E como você se imagina no futuro? O gênero está ali desde o começo ou se estabelece com o tempo? Existem mais que dois gêneros? O que é gênero e como funciona? Pode deixar de funcionar? Por que algumas pessoas se inquietam tanto sobre gênero, sobretudo quando outra pessoa não tem a aparência que se esperaria? Por que crianças às vezes são intimidadas por causa de seu gênero? E se seu corpo não aparenta o gênero que você sente ter? Como é olhar-se no espelho e não ver seu eu do jeito que o sente? Qual a diferença entre sexo e gênero? Por que existem tantas ideias diferentes de gênero de acordo com o lugar de onde se vem?
E há algumas questões relacionadas à sexualidade: Como sei se sou hétero ou gay? São as únicas duas opções? Como aprendo o que quero? Como testo o que eu quero? Se eu me sinto atraído por alguém do mesmo sexo, sou gay? Por que às vezes ficamos nervosos com pessoas pelas quais somos atraídos? Por que às vezes é mais fácil ficar sozinho lendo ficção científica? Como lésbicas fazem sexo? O que é coito anal? Os bissexuais são só “indecisos”? Por que às vezes temos vergonha do que desejamos, de nossas fantasias? Por que às vezes temos vergonha ou ficamos inquietos quanto a desenvolver novas características sexuais ao crescermos? Por que algumas pessoas odeiam gays e lésbicas? Por que às vezes é tão assustador não se encaixar? O que as crianças podem fazer por um mundo em que ninguém sofra por causa de seu gênero ou sexualidade?
Você escreveu em “Problemas de Gênero” que “rir de categorias sérias é indispensável para o feminismo”. Quais são essas categorias e por que ser feminista hoje?
Talvez gênero seja uma dessas categorias. Quando não fico irritada, eu rio ao ter de preencher a opção “masculino” ou “feminino”. Se você pensar bem, é um jeito esquisito de dividir o mundo. Por que essa é a primeira questão que é feita e respondida quando uma criança nasce? Talvez nos transformemos em nosso gênero, ou nos livramos dele? Não dizemos quando uma criança nasce: “É um heterossexual!”.
Pode-se escapar do gênero?
Na verdade, não. Mesmo que às vezes possamos e que por vezes nos vejamos fora de suas normas, sempre nos relacionamos com aquilo pelo qual somos chamados, interpelados. Podemos recusar e mudar gêneros, tentar viver fora das normas, mas lidamos com um mundo social que vai desafiar isso. Mesmo a quebra mais radical de gênero tem de lidar com instituições, discursos e autoridades que buscarão designações pelo gênero. É uma luta.
ÚRSULA PASSOS, 28, é redatora da “Ilustríssima”.
avaf (assume vivid astro focus) é o nome da dupla de artistas formada pelo carioca Eli Sudbrack e pelo parisiense Christophe Hamaide-Pierson.
FONTE: FOLHA DE S. PAULO