Depois de sofrer um estupro coletivo, K., de 28 anos, engravidou de um de seus três abusadores. Apesar de, por lei, ter direito ao aborto, a vítima buscou a interrupção clandestina — entrando para a estatística de 67,4% de mulheres adultas que não fazem o procedimento pelo SUS após uma gravidez em decorrência de violência sexual, segundo um relatório de 2014 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Elas sofrem pela falta de informação sobre esse direito e, por vezes, com o julgamento dos próprios médicos. É mais uma das etapas de uma via-crúcis, que passa pela culpabilização da vítima na delegacia e a impunidade na Justiça, como o EXTRA mostrou no último domingo. O debate veio à tona após o estupro coletivo da jovem X., de 16 anos, numa comunidade da Zona Oeste no fim do mês passado.
— Muitas mulheres provocam o aborto ou buscam o clandestino por não conhecerem esse direito, por medo de serem julgadas, como acontece nas delegacias — diz a assistente social e pesquisadora da UFRJ Rejane Santos Faria. — A informação deveria vir de todos os serviços que compõem a rede de proteção à mulher, como unidades de saúde, centros de referência à mulher, delegacias.
O Ministério da Saúde informou que, em todo o país, 4.021 bebês nasceram de mães de até 12 anos que foram estupradas entre 2011 e 2014 — o órgão, porém, não concluiu o relatório sobre o número total de bebês nascidos após estupro. No Rio, houve 4.725 registros policiais de abuso sexual em 2015. O Ipea estima que cerca de 7,1% dos casos resultam em gravidez. Isso significaria que, entre os estupros notificados, cerca de 335 levaram a uma gestação.
Embora as secretarias municipal e estadual de Saúde informem que todas as unidades do SUS são capacitadas para fazer o abortamento legal, apenas o Hospital Maternidade Fernando Magalhães, em São Cristóvão, é tido como referência no Rio, segundo relatório de 2013 do Senado Federal. Em 2015, foram feitos 50 abortos na rede municipal (46 no Fernando Magalhães) e apenas três na estadual, cuja principal unidade para o procedimento é o Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti.
— Todos deveriam fazer, mas a maioria encaminha para cá — diz a diretora de Ginecologia e Obstetrícia do Fernando Magalhães, Adriana Cavalcanti, que chama atenção para os relatos das vítimas que chegam à unidade: — Elas contam que os médicos perguntam: “Como você vai fazer isso? É contra lei. Você vai tirar seu bebê?”
Mesmo no hospital de referência, médicos plantonistas desconfiam dos relatórios sobre as pacientes durante a avaliação anterior ao aborto legal.
— Tem colegas meus que leem os relatos (delas) e falam: “Brincadeira fazer aborto nessa menina. Que história mal contada”. Incriminam demais as mulheres — afirma Adriana.
Pelo Código Penal, o processo deveria ser simples: bastaria o relato da vítima para o abortamento, não sendo exigido qualquer documento. No Fernando Magalhães, Adriana garante que é assim. Porém, o relatório do Senado diz que médicos da unidade, além de, em alguns casos, se recusarem a fazer o procedimento, chegam a pedir que as vítimas escrevam uma carta destinada ao feto, “em uma clara agressão psicológica a esta mulher, que já está fragilizada pelas circunstâncias da violência e não recebe o amparo necessário do Estado”, diz o relatório.
No caso de K., estuprada pelo então namorado e dois amigos, no ano passado, a própria advogada aconselhou o aborto clandestino e disse que seria necessário documento que comprovasse a violência sexual:
— Quando descobri a “coisa”, minha advogada falou que seria melhor fazer clandestinamente. Ela disse que, para conseguir liberação no SUS, precisaria da prova do estupro. E, como o laudo do Instituto Médico Legal não foi conclusivo, provavelmente por causa do tempo (o exame foi três dias após o crime), teria que esperar a decisão judicial. Quando saísse, não poderia mais fazer — conta K., que não sabia que não há necessidade legal de apresentar qualquer exame ou documento.
Já H., de 24 anos, estuprada aos 21 por três homens, ao sair de uma festa, nem sabia que o aborto legal era um direito da vítima de violência sexual. Por medo de ser presa ao procurar um hospital para abortar, acabou tendo o bebê:
— Eu não procurei o SUS pois não sabia que existia esse “lance” de poder abortar em caso de estupro. Pensei que seria presa se pedisse isso num hospital. E também por medo da sociedade não considerar estupro. Tentei fazer um aborto com ervas e remédios, mas não consegui. Depois, desisti e deixei a gravidez rolar. Mas nunca revelei quem é o pai do meu filho ou o que aconteceu, por culpa.
Órgãos públicos alegam que há capacitação profissional
O Ministério de Saúde informou que, nos últimos dois anos, foram qualificados 376 profissionais, em 22 estados, para o atendimento às vítimas de violência; já a Secretaria estadual de Saúde do Rio disse que 60 profissionais foram capacitados, desde 2014.
Embora não tenha informado o número de pessoal qualificado, a Secretaria municipal de Saúde disse que as dez maternidades da rede estão aptas a atender as vítimas e fazer aborto legal. O órgão informou, ainda, que não faz parte do protocolo de atendimento do Fernando Magalhães a necessidade de escrever cartas e que as pacientes têm acompanhamento psicológico.
A Polícia Civil disse que, durante atendimento na delegacia, os agentes são orientados a informar sobre a possibilidade de as vítimas realizarem o aborto se assim desejarem.
Fonte: Jornal Extra