Cerca de 1,8 bilhão de pessoas ao redor do mundo menstruam e milhões delas enfrentam dificuldades ou sequer têm acesso a produtos de higiene, saneamento básico e educação adequada para lidar com o período menstrual. Esse problema é chamado de pobreza menstrual e tende a se agravar em um momento de pandemia, como o que vivemos, em função dos drásticos impactos no emprego e na renda de milhares de famílias e das restrições de circulação impostas para conter a propagação do novo coronavírus.
A pobreza, ou precariedade menstrual, e o tabu em torno da menstruação impedem especialmente meninas e mulheres cisgênero — mas também homens trans — de participar da vida cotidiana, forçando-as a se ausentar da escola ou do trabalho durante seus períodos menstruais.
— A pobreza menstrual tem a ver com a falta de recursos de meninas e mulheres para acessar produtos para manter uma boa higiene no período da menstruação, e tem a ver com a infraestrutura do seu ambiente, especialmente de saneamento.O termo também se refere a falta de acesso à educação necessária para gerenciar sua higiene menstrual. Para um grupo de mulheres mais vulneráveis, a pobreza menstrual está relacionada a uma questão de direitos humanos e de necessidades básicas que não são atendidas — explica Nicole Campos, gerente técnica de programas da Plan International Brasil, organização que tem uma série de iniciativas que promovem a educação menstrual no país.
De acordo com a ONU Mulheres, 12,5% das meninas e mulheres ao redor do mundo vivem na pobreza e o custo alto dos produtos de higiene as impede de acessar meios adequados e seguros para gerenciar seus períodos de menstruação, como o uso de absorventes íntimos internos e externos, coletores ou calcinhas absorventes. Por isso, muitas acabam usando folhas de jornal, sacolas plásticas, meias ou panos velhos para absorver o sangue, aumentando os ricos de infecção e colocando sua saúde em risco. Além disso, 1,25 bilhão de meninas e mulheres ao redor do mundo não tem acesso a banheiros seguros e privados e 526 milhões sequer tem banheiros disponíveis onde vivem.
A ONU alerta ainda que o problema não é restrito aos países mais pobres. Um estudo recente feito nos Estados Unidos mostrou que uma em cada cinco adolescentes no país teve dificuldades ou sequer conseguiu comprar produtos de higiene menstrual e mais de 84% das estudantes americanas perderam, ou conhecem alguém que perdeu aulas porque não tinha acesso a esses itens.
No Brasil não há nenhum levantamento oficial sobre o assunto. Porém, uma pesquisa online feita pela Sempre Livre em 2018 com 9.062 brasileiras de 12 a 25 anos de idade revelou que, na faixa de 12 a 14 anos, 22% afirmam não ter acesso a produtos confiáveis relacionados à menstruação porque não têm dinheiro ou porque eles não são vendidos perto de casa.
— Em maior ou menor grau, a menstruação vai afetar a vida de todas as pessoas que menstruam, sejam elas meninas ou mulheres cis, ou homens trans. O tabu da menstruação vem de uma violência estrutural que é a violência de gênero. Isso faz com que ela seja ainda pior para determinados grupos. É pior se ela for pobre, negra ou lésbica. Quando você junta essas identidades ou realidades que já são marginalizadas, o efeito da pobreza menstrual é muito pior — explica Campos.
Os impactos que a pobreza menstrual tem sobre meninas e mulheres se estendem além da saúde e da higiene, reforça a socióloga.
— Ela tem impacto sobre a educação, pois muitas meninas deixam de ir à escola ou não têm bom rendimento por causa disso, e sobre o emprego decente e a igualdade de oportunidades. Muitas mulheres vão precisar se ausentar do trabalho pela falta do produto ou em função de outros sintomas associados à menstruação.
Questão de saúde pública
O debate sobre a pobreza menstrual tem ganhado força nos últimos anos. Ativistas e organizações estão cada vez mais mobilizadas para pressionar governos a distribuir produtos de higiene menstrual gratuitamente e a reduzir os impostos sobre esses itens. O tema chegou até o palco do Oscar no ano passado, quando o filme “Absorvendo o Tabu”, que narra a história de uma comunidade indiana onde as mulheres aprendem a fabricar os próprios absorventes, recebeu o prêmio de melhor curta documentário.
Também no ano passado, influenciado o filme — recomendado pela filha de 15 anos — e por reclamações de pais, alunos e professores em visitas a escolas do Rio de Janeiro, o vereador Leonel Brizola Neto (Psol) propôs um projeto de lei determinando a distribuição de absorventes nas instituições de ensino municipais. A proposta foi aprovada e promulgada pela Câmara dos Vereadores em junho do ano passado, mas até o momento não foi implementada pela prefeitura, responsável por executar o projeto.
— Nas visitas às escolas, vi uma dificuldade das meninas com a questão da menstruação e recebemos vários relatos sobre isso. Me pareceu uma questão de saúde pública e chamou a atenção o custo que esses produtos têm. O impacto no orçamento das famílias de classe baixa é muito pesado — diz o vereador e lamentar que a iniciativa não tenha sido colocada em prática ainda pela prefeitura.
A Secretaria Municipal de Educação informou que o projeto ainda não foi implementado porque “o processo referente a lei foi recebido em plena pandemia do novo coronavírus (Covid-19), momento em que as aulas já estavam suspensas.” A pasta informou ainda que, após o recebimento da lei, iniciou a análise dos custos a fim de buscar parcerias para a implementação da proposta. “Aguarda-se a normalização do funcionamento de empresas, após o período de quarentena e isolamento social, necessário para barrar a expansão da doença, para retomada do processo.”
No âmbito federal, um projeto proposto pela deputada federal Marília Arraes (PT-CE) em setembro do ano passado prevê a distribuição de absorventes íntimos para alunas de escolas públicas do ensino médio e dos últimos anos do fundamental de todo o país. Em março, outra proposta, desta vez apresentada pela deputada Tabata Amaral (PDT-SP) fez coro a demanda. O projeto prevê a disponibilização do produto em locais públicos. A socióloga Nicole Campos, da Plan International, é favor da aprovação das propostas, que hoje tramitam juntas na Câmara dos Deputados.
— É um produto caro e você não usa pouco. Se o sistema de saúde distribui preservativos e medicamentos, por que não distribuir absorventes? — questiona.
Impacto da pandemia
Moradora de Lins de Vasconcelos, Zona Norte do Rio de Janeiro, a agente Carla Grigório, 43 anos, é a única provedora da sua casa, onde moram mais seis pessoas. Três delas são mulheres jovens, que precisam de Carla para conseguir adquirir absorventes. A renda da família foi extremamente impactada pela pandemia de Covid-19 — Carla não está conseguindo trabalhar e também não conseguiu receber o auxílio-emergencial do governo. Ela tem recebido apenas o auxílio mensal de R$ 120 criado pela Central Única das Favelas (Cufa) e, com esse dinheiro, consegue comprar os itens de higiene que não costumam vir em cestas básicas distribuídas em ações solidárias.
— Quando chega o dinheiro, a primeira coisa que eu faço é ir ao mercado comprar os produtos que não vem na cesta, como o absorvente. Tenho três meninas em casa — conta a agente educacional — Temos visto um grande número de meninas aqui na favela que estão tomando o anticoncepcional direto, sem receita médica, para não menstruar e não ter que gastar esse valor com absorvente — completa. Ela chegou a iniciar uma campanha de arrecadação de absorventes na região onde mora, mas só conseguiu a doação de três pacotes.
A pandemia do novo coronavírus atinge em cheio as mulheres mais pobres, porque impacta diretamente o trabalho informal e o trabalho doméstico — onde elas são maioria. Isso tem um efeito devastador sobre a renda das famílias chefiadas por mulheres, cerca de 30 milhões no Brasil. O acesso a itens caros como absorventes íntimos fica ainda mais complicado com essa redução na renda, somada às restrições de circulação impostas pela pandemia.
— Com a crise econômica que foi desencadeada pela pandemia da Covid-19, muitas pessoas perderam empregos e muitas comunidades ficaram isoladas. Essa redução da renda ampliou as dificuldades para comprar produtos de primeira necessidade, como alimentos e produtos de higiene básica — afirma Nicole Campos, da Plan International Brasil.
O projeto “Tô de Chico”, que desde 2018 arrecada doações de absorventes para distribuir para mulheres em situação de rua no centro do Rio de Janeiro e Niterói, também sentiu os efeitos da pandemia. Desde março, as atividades e o recolhimento das doações foi interrompido.
— Tentamos fazer as doações duas vezes por mês. Em cada saída, distribuímos pelo menos uns 20 kits com 15 a 18 absorventes e também doamos calcinhas e sutiãs. As doações são recebidas de maneira informal mesmo, por quem procura a gente no Instagram ou no Whatsapp. Com a pandemia tivemos que interromper tudo, porque temos pessoas do grupo de risco na família — afirma a geógrafa Carolina Chiarello, 25, que ao lado da estudante de engenharia de produção Talita Soares, 22, criou o projeto.
Ela conta que a ideia de criar a iniciativa surgiu de uma conversa entre as duas sobre menstruação e sobre como mulheres que não têm acesso a produtos de higiene lidam com esse período. Já na primeira saída a rua, ela diz que levaram “um choque.”
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— Doamos os absorventes, mas muitas mulheres perguntaram se não tínhamos calcinhas para doar, porque nem isso elas tinham. Então percebemos que não adiantava nada só doar o absorvente e não fornecer a calcinha para que elas pudessem usá-los — afirma a geógrafa, reforçando que espera retomar as atividades do projeto assim que for possível.
O impacto da pandemia sobre a higiene menstrual não é exclusividade brasileira. No mês passado, a ativista Ndileka Mandela, neta de Nelson Mandela, que atua no combate a pobreza menstrual nas áreas rurais da África do Sul, foi informada que um contêiner carregado com 10 mil absorventes que seriam distribuídos nessas comunidades não poderia deixar Genebra, na Suíça, devido à pandemia. “Meu coração estava tão dolorido. Essas garotas estão presas em casa, não há renda para comprar comida e muito menos absorventes. Sua dignidade e sua saúde estão em jogo”, disse em entrevista à Thomsom Reuters Foundation.
Na Índia, onde o problema é agravado pelo tabu em torno da menstruação, o lockdown decretado em função da Covid-19 atingiu o fornecimento de absorventes, porque o item não foi listado como mercadoria essencial. Isso levou ao fechamento imediato das unidades que fabricam absorventes e à suspensão do transporte desses produtos. De acordo com reportagem publicada pela RFI, ONGs locais estimam que o bloqueio interrompeu o acesso de cerca de 121 milhões de mulheres a itens básicos para higiene menstrual, especialmente nas áreas rurais do país.
Fonte: O Globo