O futebol sul-americano terá, pela primeira vez na história, uma mulher comandando um time masculino. Paula Navarro foi confirmada nesta segunda-feira como a nova treinadora do Santiago Morning, uma equipe da segunda divisão do Chile.
Para se ter ideia do nível da “ousadia” do clube, que optou por apostar na experiência da treinadora em anos de sucesso no futebol feminino e no vasto currículo de cursos de especialização em equipes de ponta – como Barcelona e Athletic Bilbao -, Navarro chegou já sob a desconfiança de cartolas e atletas do próprio clube que irá dirigir.
O vice-presidente do Santiago Morning, Luis Faúndez, afirmou categoricamente:
“Não é que ela não corresponda (ao que a gente precisa). Mas há cargos que precisam ir além da questão da igualdade de gênero. Não será fácil para uma mulher dirigir um time de homens.”
Fácil, claramente não será – principalmente depois de uma declaração dessas do próprio vice-presidente do clube. Mas por que é “fácil” para um homem dirigir uma equipe de mulheres e não pode ser “plausível” para uma mulher dirigir uma equipe de homens? Se não for a capacidade, o que mais os diferencia?
Na última Copa do Mundo de futebol feminino, apenas um terço das seleções era comandado por mulheres. O interessante é notar que ninguém se espanta com isso. Ninguém olha para um time de mulheres com um homem no comando e fica espantado, indignado, boquiaberto. Parece “normal” aceitar a lógica de que mulheres serão comandadas por homens – a premissa contrária, no entanto, é inexistente. Ainda soa surreal no meio do futebol a possibilidade de uma mulher comandar um time de homens.
É preciso ressaltar que há, sim, mais homens capacitados para serem técnicos do que mulheres. Porque há mais homens no meio do futebol do que mulheres. Mas isso não acontece por uma explicação biológica – ao menos não que a Ciência já tenha provado.
Não é que o “cromossomo Y” traga consigo a tendência ao futebol, enquanto o X traz o gosto pelo ballet. Essa maioria masculina no futebol acontece porque meninos são incentivados a jogar bola. Meninas são incentivadas a dançar ballet – e quem é maioria quando o assunto é ballet? Elas, não é mesmo? Não há coincidência, nem explicação genética. A explicação está na sociedade – e em como determinamos o que é de menino e o que é de menina desde cedo nela.
Então Paula Navarro ainda é, sim, uma exceção. Não há um vasto número de mulheres que apostem na carreira de treinadoras no futebol. Talvez porque elas mesmas não encontrem referências femininas nessa área. Porque sabem que a oportunidade pode tardar a vir – pode nunca vir, aliás. E quando vier, chegará cheia de desconfianças, como as que Navarro tem enfrentado.
O capitão do Santiago Morning, o goleiro Hernán Muñoz, chegou a levantar o problema do vestiário como um impeditivo para não se ter uma mulher no comando de uma equipe masculina.
“Me pegou de surpresa. Eu via isso como uma fofoca da mídia. Não concordo com isso. No meu modo de pensar, uma mulher no vestiário masculino não faz parte do contexto, pela comodidade dos jogadores”, pontuou.
Para Muñoz, isso não seria uma questão de machismo, mas sim uma questão prática.
“Pelos argumentos que estou dando, seria imaturo me chamarem de machista. Não estou colocando em dúvida sua capacidade. A mulher avançou muito e tem capacidade suficiente, mas entrar num vestiário masculino é diferente. Sei que ela é uma boa treinadora, mas não sei se é correto. No Chile, o técnico está sempre em contato com os jogadores, entra no vestiário. Imagine uma conversa dela com os companheiros se trocando rapidamente? Essa é a razão pela qual eu acho que sai do contexto”.
Se o problema é o vestiário, fico pensando como podem haver tantos técnicos em equipes femininas. Será que eles não teriam o mesmo problema na hora da troca do uniforme? E se tantos times de mulheres conseguem “superar” esse “grande obstáculo” para terem homens em seu comando, por que o contrário não poderia acontecer?
Apesar da desconfiança de seus próprios comandados, Paula Navarro tem lidado com tudo isso com maestria. A treinadora se vê preparada para assumir o cargo e diz que “o futebol precisa de mudanças” para quebrar os velhos paradigmas e dar espaço a mais mulheres.
“Me sinto preparada, tenho uma vasta experiência. Fiz cursos lá fora, no Barcelona e no Athletic e toda a minha trajetória no futebol de base e no futebol feminino me credencia”, afirmou.
Navarro estudou Educação Física e começou a carreira de treinadora em 2007, dirigindo o futebol feminino do Colo Colo. Fez cursos de psicologia esportiva, outros da Conmebol e coleciona certificados da Fifa na área técnica. Recentemente, ela comandava a equipe feminina do Santiago Morning e coordenava a base do clube.
“Respeito completamente a opinião de Luis (vice-presidente), sua trajetória, sua fidelidade ao clube. Mas o futebol precisa de mudanças e isso seria bom. São mitos normais esses de que nós, mulheres, não podemos dirigir equipes de homens. São paradigmas, mas o futebol é tão moderno, que se pode fazer tudo. Uma mulher pode fazer o mesmo que um homem e vice-versa.”
Sobre o possível problema no vestiário, Navarro também respondeu com classe. “Em todas as equipes, técnicos e jogadores têm vestiários separados. Nunca o treinador se veste no mesmo lugar que os jogadores. Nem no Colo Colo, nem na Universidad Católica, nem na Espanha. Quando o técnico entra, os jogadores já estão vestidos. Então é um mito dizer que uma mulher não pode treinar um time masculino porque os atletas estarão nus no vestiário. Se não, um homem não poderia treinar um time feminino pela mesma lógica.”
O respaldo à treinadora veio do presidente do clube, Miguel Nasur. “Paula tem muitos anos de experiência trabalhando como técnica. Há técnicos homens que dirigem equipes femininas. Ela tem toda a capacidade, disputou vários campeonatos e não há por que achar que não tem méritos.”
Paula Navarro assume o Santiago Morning em um momento difícil – o time figura na 14a colocação da segunda divisão do Campeonato Chileno. No entanto, ela não teme o desafio.
“Conheço muito bem o Santiago Morning. Temos bons jogadores. O principal agora é que estejam dispostos a aceitar as mudanças. Todas as mudanças são para melhor”, afirmou.
Como a própria Paula Navarro disse, o futebol – e seus amantes/praticantes/dirigentes – há tempos precisa de mudanças. Precisa abrir portas para todos, independente do gênero, da raça ou da orientação sexual. Precisa abrir a cabeça para entender que o que credencia alguém a trabalhar com ele é capacidade, não nenhum dos itens anteriores.
Deixemos a técnica chilena provar na beira do gramado se é ou não qualificada para comandar homens. Assim como Corinne Diacre teve a chance comandando o Clermont Foot, da segunda divisão francesa, em 2014 – e deixou o cargo apenas para comandar a seleção feminina do país -, e Patrizia Panico está tendo a oportunidade na seleção masculina sub-16 da Itália. Chan Yuen-ting foi outra que assumiu o time masculino do Eastern em Hong Kong e o levou ao título da Premier League local, mostrando que capacidade não é (ou não deveria ser) questão de gênero.
Que em 2018, mais técnicas mulheres tenham vez – seja em times femininos ou masculinos.
Fonte: Dibradoras