A fome não espera e pode levar muitas pessoas ao desespero. Somente em 2020, 19 milhões de pessoas não tinham o que comer no Brasil, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil. Sem amparo, mulheres vão ao Facebook tentar doar o próprio filho, visando uma vida melhor para a criança. Outras ainda se oferecem como barriga de aluguel, já estando grávidas, e tentam negociar um valor. Mas elas podem ser presas por isso. E quem aceita também.
Universa conversou com uma mulher que tentava negociar o filho por R$ 300 mil. Ela dizia estar grávida de nove meses. Em uma breve troca de mensagens, explicou que estava desempregada, já tinha cinco filhos e não poderia ter mais aquele. Depois, ela apagou seu perfil na rede social.
Normalmente, os perfis de quem oferece a criança não têm foto ou o usuário utiliza uma imagem genérica. O nome também não costuma ser verdadeiro, podendo até se tratar de um golpe.
Essas pessoas negociam o filho em páginas identificadas como Barriga de Aluguel ou algum termo parecido, o que também é ilegal. No Brasil o que se permite é a barriga solidária, quando há doação temporária do útero, sem caráter lucrativo. Mas é preciso ter parentesco até o quarto grau com a mãe ou o pai. Estão nesta lista mães, filhas, irmãs, avós, tias, sobrinhas e primas. Caso a interessada não tenha parentes, ela pode pedir autorização no CRM (Conselho Regional de Medicina) para que uma amiga ceda o útero, sem ganhos com isso.
Se um médico ou clínica forem pegos realizando o procedimento, o CFM pode lhe dar desde uma advertência à cassação do diploma. Em caso de denúncia contra os envolvidos, a Justiça pode se basear na lei de transplantes, que criminaliza o comércio de tecidos, órgão e partes do corpo humano, com pena de três a oito anos de prisão.
Para registrar a criança, as mulheres sugerem aos interessados a coparentalidade, quando os dois lados assumem o cuidado do bebê. Ou mesmo combina de o homem registrar como pai, o que é crime.
“Estou em desespero”
Em um dos posts, uma mulher escreve: “Estou grávida de 2 meses, ainda não sei o sexo, vou iniciar o pré-natal e vou fazer a doação. Sou de SP”.
A mensagem teve mais de 20 comentários, e diante do interesse de uma seguidora, a gestante respondeu: “Vou doar sim. A pessoa que eu conversar e ver que é a certa, fechamos”, indicando que entregará o bebê para quem ela confiar que cuidará bem da criança.
Em outra página localizada por Universa, uma pessoa postou a foto do filho, um bebê que aparenta não ter um ano, disse que ele estava internado com pneumonia e que precisava de ajuda para comprar leite, fralda e gás. Dias depois anunciou que estava doando seu outro filho, o bebê que esperava na barriga. Ela não revelou de quantos meses estava grávida.
“Meu filho hoje não comeu nada. Estou desesperada. Ovo, pão, qualquer coisa serve. Estou gestante. Se tiver alguém que tenha interesse em adotar eu dou, pois não tenho mais condições. Só faço chorar. Estou em desespero”, ela desabafou.
A Universa, a mulher disse que o bebê estava bem. Não confirmou se prometeu a criança que esperava a alguém, mas reforçou que tinha fome e não estava se alimentando.
Mulheres têm o direito de entregar
criança à adoção A gestante ou mãe que não pode ou não quer ficar com a criança tem o direito de manifestar seu interesse em entregar o filho para a adoção, antes ou logo após o nascimento. Mas ela não pode escolher a quem entregar a criança.
O primeiro passo é procurar a Vara da Infância e da Juventude, conforme determina a Lei da Entrega Legal. Essa mãe será acompanhada por uma equipe de psicólogos e assistentes sociais até o fim da gestação. Depois que o bebê nascer, é novamente avaliada.
Antes de a criança entrar para a adoção, a Justiça tem até 180 dias para buscar sua família extensa, que são parentes próximos ou pessoas com as quais ela mantém vínculos afetivos. Caso não encontre, o juizado decreta a extinção do poder familiar e coloca a criança sob a guarda provisória de quem estiver habilitado a adotá-la ou de entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional. Quem vai adotar precisa cumprir os procedimentos previstos em lei, pedir habilitação na Vara da Infância como adotante e passar por entrevistas e cursos com a equipe técnica do fórum.
Importante que essa mãe que escolhe doar a criança saiba que é garantida a ela o direito ao sigilo sobre o nascimento.
Agora, entregar uma criança sob pagamento ou promessa de recompensa pode dar uma pena de reclusão de 1 a 4 anos e multa, segundo o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Quem compra a criança também pode ser enquadrado no crime de tráfico de pessoas, e ficar preso por 4 a 8 anos, além de pagar multa, conforme consta no Código Penal.
E o CP também determina que receber a criança gratuitamente, mas registrá-la como se fosse sua filha rende prisão de dois a seis anos.
“Desespero pode vir da falta de apoio paterno e familiar”
Na avaliação do juiz Iberê de Castro Dias, titular da vara de infância e juventude protetiva de Guarulhos (SP), o processo de mercantilização de crianças, mais que absurdo, é uma via de degradação social.
“Não é assim que se constrói uma sociedade justa e solidária, como prevê a Constituição. E, principalmente, é uma via totalmente inadequada também em termos de proteção à criança objeto desse trato, com enormes possibilidades de problemas legais para quem participa disso e questões psicológicas profundas para a criança que inocentemente acaba sofrendo as consequências dessa conduta.”
Membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o advogado Ariel de Castro Alves acrescenta que quando há busca e apreensão de uma criança potencialmente vítima de comercialização, tráfico de pessoas, subtração, entre outras situações, ela fica num abrigo, gerando sofrimento a ela.
“Em muitos desses casos temos mães desesperadas ou até em depressão gestacional ou depressão pós-parto. Elas precisam de apoio e acompanhamento psicológico. Muitas também ficam desesperadas pela falta de apoio paterno e familiar, quando já estão em vulnerabilidade social. Cabe ao poder público ter programas e serviços de apoio a esses gestantes e mães.”
Páginas podem ser denunciadas
Qualquer pessoa pode denunciar usuários ou páginas que anunciam as práticas de doação e adoção de crianças. Basta reunir os links, conforme explica a assessoria da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Por e-mail, a corporação explica que quando a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática é alertada sobre uma página em que claramente se vê crimes, começa uma investigação e pede a desativação do perfil, preservando, no entanto, as informações necessárias para chegar aos responsáveis por ela.
Ainda segundo a polícia, se o perfil for de usuário nacional, tem como encontrar a pessoa.
Procurada, a assessoria de imprensa do Facebook removeu alguns links enviados pela reportagem, e disse não permitir que as plataformas sejam usadas para oferta ou adoção ilegal de crianças.
“Temos mais de 40 mil pessoas trabalhando em áreas ligadas à segurança, e usamos uma combinação de denúncias da nossa comunidade, tecnologia e revisão humana para identificar e remover conteúdos que violam nossas políticas. Colaboramos constantemente com as autoridades brasileiras em investigações, fornecendo informações nos termos da legislação local”, escreveu em nota porta-voz da Meta.
Fonte: UOL