A sociedade não pode se furtar a debater sobre o direito da mulher a gerir o próprio corpo e o direito à potencialidade de vida do embrião
O Projeto de Lei 5069, de autoria do deputado Eduardo Cunha, recentemente aprovado na Comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados e que pretende dificultar o acesso ao aborto legal em caso de gestação decorrente de estupro, vem mobilizando milhares de mulheres pelo Brasil, as quais saíram em protesto contra a proposta e em defesa de mais direitos relativos à questão, inclusive, da legalização.
Está claro que o projeto segue na contramão de todo o avanço das lutas feministas e femininas no decorrer das últimas décadas, as quais, em muitos países desenvolvidos resultaram na aprovação de leis que, até uma determinada medida, permitem a realização de aborto, independentemente do motivo, como é o caso do Uruguai. No Brasil, cuja legislação já proíbe e criminaliza o aborto, podemos vir a ter leis ainda mais duras e que criam mais dificuldades para as vítimas de violência sexual, o que é algo extremamente cruel com a mulher e com os valores humanos mínimos.
Esse projeto, na realidade, revela uma vertente sombria do machismo patriarcal institucionalizado em nossa sociedade e simboliza um apoio velado à violência contra a mulher.
Ao dificultar o aborto legal e praticamente obrigar que a mulher tenha o filho produto de estupro, de certa forma legitima-se esse tipo de realização sexual. O objetivo da lei atual, ao autorizar o aborto em caso de violência, não é apenas permitir o uso livre do corpo pela mulher nessa situação, mas também negar esta forma cruel e violenta de contato sexual.
Por outro lado, se há um aspecto positivo nisso tudo é que o projeto reaviva o debate sobre o tema do aborto, que é extremamente complexo e exige ponderação, sopesamento entre valores existentes na nossa sociedade.
Devemos ou não seguir os países que o legalizaram, permitindo a interrupção da gravidez para toda mulher? É preciso entender que essa resposta abarca duas dimensões: uma de saúde pública e outra de justiça real. E a realidade é que mulheres, independentemente de classe social, fazem abortos. A diferença é que aquelas que pertencem a segmentos sociais mais privilegiados têm acesso livre à prática, uma vez que as clínicas, embora clandestinas, não são reprimidas.
Já a mulher pobre, que não têm acesso aos recursos mais higiênicos, coloca a vida em risco, utilizando medicamentos e métodos caseiros. De acordo com dados de uma pesquisa feita a pedido da Anis, uma organização que defende a legalização do aborto, em parceria com a Universidade de Brasília, uma em cada sete mulheres brasileiras com idade entre 18 e 39 anos já fez aborto e que mais da metade delas teve complicações durante ou depois do procedimento. É, portanto, um evidente problema de saúde pública.
A questão não é, obviamente, banalizar o aborto como prática corrente de interrupção de gravidez. A questão é se o direito penal deve ser aplicado nessa circunstância. A mulher sem recursos que vive um momento traumático deve ainda ser submetida à sanção do Estado?
É muito significativo que punições ao aborto sejam pensadas por homens que, pela condição biológica, são incapazes de engravidar e, consequentemente, de experimentar o conflito vivido e relatado por mulheres diante da decisão de interromper uma gestação. Trata-se de uma experiência traumática para muitas delas, com marcas e feridas psíquicas indeléveis. Achar que a mulher que faz um aborto toma uma decisão banal é uma compreensão totalmente limitada de quem não pode dimensionar esse conflito interno.
E há ainda neste debate, uma outra dimensão, bastante relegada por todos os grupos de interesse, que é essencialmente filosófica. O aborto implica um conflito de valores ou mesmo de direitos. Se de um lado há o direito da mulher a gerir o próprio corpo, do outro há o direito, que pode ser reivindicado, de preservação da potencialidade de vida existente no embrião. Ambos são interesses relevantes.
É importante reforçar que esse debate deve ser feito apartando-se qualquer valor religioso e que viver em uma sociedade democrática implica que diversos valores e direitos sociais coexistam de forma que o direito de um, ao preponderar, não elimine totalmente o direito do outro. Aplicando essa regra à questão do aborto, diante do conflito entre o direito da liberdade corporal da mulher e o da potencialidade de vida do embrião, é preciso que se realize ponderação entre eles.
A solução que tem sido adotada pelo mundo civilizado é bastante adequada, traduzida em leis que garantem a preponderância do direito da mulher à interrupção até um determinado estágio da gestação – geralmente até a 12ª semana. A partir daí, quando, segundo a ciência, começam a surgir as primeiras terminações nervosas do feto, momento em que ele passa a ter capacidade de sentir e interagir com o meio, prepondera o seu direito à vida.
Esse critério é tão pertinente que também é utilizado na medicina para determinar a chamada morte cerebral – ou o fim da vida. Ou seja, o limite para o direito à preservação da vida no fim é o mesmo para delimitar o direito à vida no início, em sua potencialidade. Essa ponderação racional preserva de forma equilibrada os dois direitos – o da mulher e o do feto.
Se, por um lado, o projeto do presidente da Câmara pretende arrasar com o direito da mulher sobre seu corpo nesta questão, instituindo a preponderância absoluta do direito do embrião, inclusive em caso de estupro – o que é um absurdo –, por outro, é importante que mesmo quem defende a descriminalização do aborto não se negue a debater a legitimidade do direito à vida em sua forma potencial. O mecanismo de preservação de valores é sempre o melhor caminho e a democracia é o regime próprio para promover o equilíbrio entre direitos conflitantes.
De qualquer maneira, pela dimensão da saúde pública, que sem dúvida é a mais urgente, e da realidade do aborto no Brasil, é imprescindível que o Estado favoreça o exercício do direito da liberdade da mulher, estabelecendo o mesmo limite adotado por outros países em relação ao estágio da gravidez.
A partir daí, é preciso que se garantam não só a preservação da vida do feto e o seu nascimento, mas, sobretudo, o seu direito a um acolhimento efetivo, que lhe assegure uma existência digna e repleta de possibilidades. Afinal, como disse o poeta Maiakovski, em verso depois cantado por Caetano Veloso, gente é pra brilhar, não pra morrer de fome.
Fonte: Carta Capital