Nesta segunda-feira (10), o governo Lula (PT) completa 100 dias no poder. Fazer uma avaliação de um governo que não começou propriamente há 100 dias, mas há mais de 20 anos, é um desafio. Além das continuidades e novidades práticas e discursivas, é importante uma reflexão sobre a conjuntura e os cenários que envolvem variáveis numerosas e complexas. Nós, do movimento Mulheres Negras Decidem, no entanto, não nos furtaremos deste esforço.
O presidente Lula, junto a poucas outras lideranças do PT e da frente ampla, parece ter compreendido que uma transformação radical precisa acontecer em resposta aos cidadãos brasileiros que votaram em seu projeto político popular. Mas, para materializar essa proposta de um país justo, solidário, sustentável, soberano e criativo é imprescindível que a energia política condutora desse processo flua e crie raízes em todas as instâncias de poder. Celebramos a chegada à Esplanada dos Ministérios de lideranças com Margareth Menezes, Silvio Almeida e Marina Silva e vibramos com a cerimônia conjunta de posse de Anielle Franco e Sonia Guajajara.
Mas entre os avanços promovidos pelos governos do PT no passado —aos quais podemos adicionar agora os pacotes de políticas para mulheres, negros e negras, indígenas, povos originários e povos de terreiros— lógica da guetificação, que se provou errônea e insuficiente há 20 anos, parece persistir.
A simples observação de que raça, gênero, território e classe são marcadores sociais determinantes para as políticas públicas setoriais não resolve a questão fundamental do isolamento das pastas que cuidam exclusivamente desses temas. Em consequência disso, as limitações orçamentárias condenam o desenvolvimento da população negra e de outros grupos minorizados.
Os pobres, os indígenas, as mulheres e os pretos não podem ser apenas objetos (leia-se, público-alvo) de políticas públicas, mas precisam figurar como sujeitos com condições de participar e incidir nos processos de tomada de decisão em todos os espaços. E o que não faltam são profissionais aptos e dispostos para tanto. Mas como reivindicar a presença de mais mulheres negras no poder sem a solução definitiva do caso Marielle Franco? O feminicídio político da vereadora completou cinco anos sem respostas. Cinco anos é mais do que um mandato de vereança e quase três vezes mais tempo do que Marielle esteve como parlamentar na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Em total contraposição à reação da sociedade, que cobra por respostas porque entende que é um crime que projeta terror e desesperança sobre outras lideranças femininas e negras, de esquerda, LGBTs, de favelas e periferias, as autoridades brasileiras parecem ter dificuldade em conectar a interrupção brutal da vida de uma parlamentar eleita com mais de 46 mil votos aos direitos de todas, todos e todes de exercer em plenitude a sua cidadania.
No que diz respeito às pautas que consideramos urgentes, acreditamos que os conhecimentos, experiências e inspiração política de mulheres negras podem ajudar a vislumbrar respostas para questões novas e antigas. Não restam dúvidas de que, nos últimos anos, houve um avanço sem precedentes do autoritarismo em detrimento do pluralismo e da participação cidadã na política nacional e internacional. Para nós, é importante registrar a natureza particularmente militarista e supremacista branca das formas de reorganização e ascensão da extrema direita —um fenômeno global— com notas acentuadas de ódio contra mulheres e pessoas negras, principalmente no Brasil.
Somos um movimento de mulheres negras jovens sensíveis às delicadezas da atual conjuntura e conscientes das enormes tarefas históricas que se apresentam para a nação brasileira. Com serenidade, afirmamos que a conciliação e o apaziguamento não devem ser sinônimos de inércia e interdição. De forma pragmática, trabalhamos pela politização da população por outros motivos que não o ressentimento e a raiva, dobramos nossas apostas nos processos coletivos e estimulamos o aumento da consciência popular sobre a necessidade de defender a democracia.
Esperamos que os esforços do Mulheres Negras Decidem e de tantos outros coletivos, organizações e movimentos sejam acompanhados de uma postura responsável do novo governo, para o reordenamento das forças políticas (inclusive de oposição) e o empoderamento daqueles setores que estão verdadeiramente comprometidos com o cumprimento do pacto democrático firmado em 1988.
Como mulheres negras, somos mais de 28% da população; mobilizadoras, entre o pensar e o sentir, prontas para contribuir com o desenho e a implementação desse novo projeto de nação.