(Marina Pita/Agência Patrícia Galvão, 19/07/2016) Em novembro de 2015, o governo brasileiro anunciou que o vírus zika havia sido detectado em amostras de sangue e tecidos de um bebê com microcefalia, além de ter sido encontrado no líquido amniótico das gestantes. O governo brasileiro então admitiu a relação entre o vírus e as más formações no sistema nervoso central de bebês. O Ministério da Saúde declarou emergência sanitária nacional.
A reação do então diretor do Departamento de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde foi indicar que as mulheres adiassem os planos de gravidez até que houvesse mais informações a respeito. Em uma sequência de declarações desrespeitosas, o então ministro da Saúde, Marcelo Castro, afirmou que “sexo é para amadores e gravidez para profissionais” e “não vamos dar vacina para 200 milhões de brasileiros. Mas para pessoas em período fértil. E vamos torcer para que mulheres antes de entrar no período fértil peguem a zika, para elas ficarem imunizadas pelo próprio mosquito. Aí não precisa da vacina.”
Diversos gestores públicos e profissionais de saúde de outros países da América Latina, como Colômbia e El Salvador, divulgaram orientações semelhantes.
José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE), explica por que é inócuo este tipo de orientação, em países onde ainda não foram garantidos os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Agência Patrícia Galvão – Considerando que, diante da epidemia de zika, uma das principais respostas dos Estados latino-americanos foi dizer para as mulheres não engravidarem. Em sua opinião, esta é uma solução eficiente?
José Eustáquio Diniz Alves – Bem, é preciso deixar claro que o Brasil não necessita de política de controle da natalidade alguma. O número médio de filhos por mulher no país já está abaixo do nível de reposição desde 2005. Isto quer dizer que no futuro, no máximo no início da segunda metade do século 21, a população brasileira vai começar a diminuir.
Mas o Brasil precisa sim de uma política clara e efetiva na área dos direitos sexuais e reprodutivos. A Constituição Brasileira, no § 7º, do artigo 226, garante o planejamento familiar como uma “livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito”. A Lei nº 9.263/1996, que regulamenta o planejamento familiar no Brasil, estabelece que o Sistema Único de Saúde (SUS) deve oferecer todos os meios necessários para o atendimento global e integral à saúde reprodutiva de homens e mulheres.
Contudo, é de amplo conhecimento que o sistema de saúde pública no Brasil está bastante debilitado. No caso da saúde reprodutiva as debilidades são graves, pois o país possui alto índice de gravidez indesejada e de não planejada. Segundo a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS), de 2006, com relação à última gravidez, entre as mulheres jovens de 15-19 anos de idade que tiveram filhos nos cinco nos anteriores à pesquisa (entre 2002-2006), no meio urbano, 70% disseram ter tido o filho no momento errado ou que não queriam mais engravidar, sendo que 61,6% delas disseram que engravidaram no tempo não planejado e 8,8% não queriam mais ter filhos.
Portanto, diante destes números, é quase inócuo o governo brasileiro sugerir o adiamento da gravidez diante da epidemia da zika. As mulheres ricas ou mais escolarizadas conseguem exercer o autocontrole dos seus desejos e de suas funções reprodutivas. Elas podem adiar a gravidez, pois não dependem do SUS, e podem pagar pelos serviços de saúde sexual e reprodutiva na rede privada, de melhor qualidade. Mas as mulheres pobres e menos escolarizadas não possuem os recursos para adquirir os meios necessários para a regulação da fecundidade e, quando conseguem, têm altas taxas de falha devido ao uso não adequado.
Adicionalmente, principalmente entre as mulheres mais pobres, tanto a mortalidade infantil, devido ao pré-natal de baixa qualidade, quanto a mortalidade na infância são altas devido à má assistência à saúde, mesmo aquela oferecida por profissionais de saúde (apesar de mais de 98% dos nascimentos ocorrerem em hospitais). Assim, chega a parecer desaforo falar em evitar gravidez devido ao zika para evitar sofrimento. Vale ainda ressaltar que a própria microcefalia tem um número elevadíssimo de ocorrências no país e que não estão vinculadas ao zika.
Agência Patrícia Galvão – O discurso de que não é uma boa hora para engravidar tem impacto real em qual grupo populacional?
São as mulheres mais pobres e menos escolarizadas que mais carecem dos serviços de saúde sexual e reprodutiva. As mulheres negras estão sobre-representadas nessa camada social menos incluída e, assim, são super penalizadas pelas fragilidades do SUS. Especificamente, as adolescentes pobres, negras e menos escolarizadas são triplamente castigadas pela ausência de uma política efetiva de direitos sexuais e reprodutivos. O SUS tem dificuldades históricas para lidar com as questões de sexualidade da juventude brasileira. A gravidez precoce e não planejada prejudica toda uma geração de meninas que se veem forçadas a sair da escola e que têm menor probabilidade de uma inserção produtiva adequada no mercado de trabalho do que aquelas que não são mães, pois não contam com os equipamentos coletivos para a conciliação entre maternidade, escola e emprego. Evidentemente, a epidemia de zika e a multiplicação dos casos de microcefalia só agravam esta situação. Ainda, diante das noticias alarmantes, diante de uma gravidez não planejada, as mulheres podem aumentar a fila daquelas que arriscam a vida ou a saúde em busca de uma interrupção da gravidez e são novamente as mulheres pobres e mais jovens que estarão sujeitas a este problema de saúde pública tão conhecido no país.
Agência Patrícia Galvão – A zika e a microcefalia não atingem também as mulheres dos grupos mais privilegiados da população?
O impacto social da zika e da microcefalia é diferenciado em termos sociais. Como já disse anteriormente, as mulheres pertencentes às famílias com maior poder de compra podem suprir as deficiências das políticas públicas brasileiras, comprando no mercado os serviços necessários para efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos. Elas conseguem adiar uma gravidez e escolher o melhor momento para procriar. Além de tudo, o acesso ao aborto seguro é um marcador social evidente, pois uma mulher ou adolescente que passa pela experiência de uma gravidez indesejada, e está exposta às consequências negativas da epidemia de zika, pode comprar um procedimento de interrupção da gravidez, sem riscos de uma morbidade ou mortalidade materna.
Agência Patrícia Galvão – Considerando que a grande maioria das mulheres cujos filhos têm síndrome congênita do zika foram consideradas como aptas a receberem o Benefício de Prestação Continuada (BPC), como este tipo de abordagem política do problema (“não engravidem”) as impacta?
É óbvio que o Estado precisa apoiar as mulheres, os casais e as famílias com filhos com problemas neurológicos da síndrome congênita do zika. Mas o BPC é uma forma de remediar. Porém, o Estado brasileiro precisava prevenir estes tipos de epidemias (dengue, chikungunya, zika, febre amarela etc.) que já deveriam ter sido erradicadas no início da transição epidemiológica. A falta de saneamento básico do Brasil é uma vergonha. Na cidade do Rio de Janeiro, que sediou diversos megaeventos, o problema do saneamento é crítico. Na véspera das Olimpíadas 2016, a poluição da Bacia da Guanabara, das lagoas de Jacarepaguá e dos rios da cidade são mais do que um problema de saúde, pois estão afetando a credibilidade do país diante da comunidade internacional. Superbactérias com resistência antimicrobiana e zika são dois símbolos da crise brasileira e, como disse o Eduardo Paes, estamos diante de uma “oportunidade perdida”. Ampliando a perspectiva do prefeito carioca, pode-se dizer que o Brasil está parindo uma geração perdida em um momento histórico perdido. É tudo muito triste.
Fonte: Agência Patíricia Galvão