Por Cristina Buarque
Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco
Do ponto de vista das mulheres, o primeiro aspecto a ser trazido para a discussão sobre a interrupção da gravidez por má formação cerebral congênita é o fato da maioria dos casos de fetos anencéfalos e daqueles afetados pela microcefalia decorrer de uma gravidez desejada pelas mulheres. Esse imenso e indispensável detalhe – o desejo – promove, compulsoriamente, a introdução de novos aspectos na discussão sobre o aborto. Porém não modifica a raiz da questão principal, renovada na contemporaneidade, mas colocada pelas próprias mulheres há muito tempo: garantir às populações femininas o direito à primazia de decidir sobre seu corpo, de forma a poder interromper uma gravidez até a décima segunda semana após a fecundação, servindo-se, para tanto, do desenvolvimento científico exigido à segurança de suas vidas. Portanto, desejar ou não desejar uma gravidez sob qualquer condição é o fulcro da questão. Da mesma forma, interromper ou não uma gravidez é uma decisão de cada mulher: não é uma obrigação nem uma proibição.
Contraditório: Dom Paulo Garcia é contra aborto em caso de microcefalia
Isso recomenda que observemos com a maior atenção o que dizem as mulheres e escreve a filósofa tunisiana Gisèle Halimi: “Sim, o meu corpo me pertence. Mas se ele me pertence, é, acima de tudo, porque sou mais do que um corpo. Sou também uma razão, um coração, uma liberdade. Sou a responsável pela mais importante das escolhas de um ser humano: dar – ou não – à vida.” E assim, temos nos comportado nós, as mulheres. Não fazemos guerras, nem mesmo santas, não estupramos crianças e adolescentes. Dessa maneira, é absolutamente inegável que somos capazes de defender a vida, como legítimas titulares do direito de defender a própria vida emocional e intelectual. A autorização do aborto é apenas uma questão de poder entre as mulheres e os homens, como esclareceu de forma lapidar o ministro Ayres Britto em seu parecer durante a votação final que permitiu o aborto do anencéfalo: “Se os homens engravidassem, a interrupção de gravidez de anencéfalos estaria autorizada desde sempre”. Levamos seu pensamento para o quadro de epidemia de microcefalia.
Os maiores defensores do suposto direito dos homens de definirem a sorte da maternidade das mulheres continuam vindo do terreno mais estranho à reprodução e à sexualidade humana: as religiões. São elas, obstinadamente dominadas pelos homens, que culpam as mulheres das dificuldades do mundo, ao tempo em que preconizam a negação do direito das populações femininas de se pouparem de sofrimentos, sacrifícios e solidões, inclusive diante dos diagnósticos da ciência. Precisamos aprender a ser críticos e não ofender a Deus com as temeridades das religiões. Não devemos nos esquecer de que aqueles que hoje dizem defender a vida, entre os séculos XIV e XVIII, praticaram a eugenia de sexo, queimando nas fogueiras da Santa Inquisição principalmente mulheres adultas, mas, também crianças, por entenderem que esse sexo copulava com o demônio e praticava o infanticídio. Essas terríveis acusações vinham das áreas cultas, como nos demonstram os historiadores, a exemplo de Alan Macfarlane e Jean Delume, e não de puras crenças populares. Quanta incoerência ainda teremos que enfrentar para sermos livres?
No caso da má formação cerebral da anencefalia estamos diante de uma fatalidade monstruosa, que atinge, porém, um número restrito de pessoas. No surto de microcefalia, produzido pelo vírus da zika, lidamos com uma epidemia, ou seja, com uma fatalidade que atinge muitas pessoas. De acordo com os especialistas não há tratamento capaz de promover uma reversão desse processo ou evitar a contaminação do feto depois que a mãe foi contaminada. Boas intenções à parte, observemos, então, que se o Brasil ainda não foi capaz de resolver a questão dos direitos sexuais e reprodutivos, bem como de controlar a reprodução do Aedes aegypti, presente no nosso território de forma contínua desde fins dos anos de 1960, como podemos acreditar que o Estado Nacional tenha capacidade de acolher com dignidade aqueles que serão vítimas do surto de microcefalia?
Finalizando com uma dose de otimismo, trazemos as palavras Jean Rostand, cientista da Academia Francesa, ao testemunhar no processo de Bobigny, em 1972, quando a lei francesa sobre o aborto sofria contestações: “Respeitar a vida é, parece-me, respeitar aquelas que dão a vida, e, em primeiro lugar, a mulher, que por tempos imemoriais tem sido objeto da vontade do homem ou da razão do Estado, e respeitar a sua liberdade – singularmente – a liberdade de dar a vida – parece-me indispensável para abrir à humanidade os caminhos da verdadeira vida humana…”.