Muitos países fecham os olhos para esse crime, mas a abordagem da nação asiática pode servir de modelo para uma solução global.
Na emergência lotada de um hospital, o médico Prabhat Rijal se aproxima de uma paciente coberta de hematomas. A chegada dela era esperada.
Como Rijal, seus colegas do Hospital Sub-Regional de Rapti, em Ghorari, no oeste do Nepal, veem pelo menos um caso desse tipo por noite. Geralmente, eles ocorrem pouco depois do anoitecer, quando homens violentos voltam do trabalho e começam a beber.
As pacientes chegam com as mãos no estômago ou reclamando de dor de ouvido, mas enfermeiros e médicos buscam hematomas ou cortes que sugerem uma história diferente.
A emergência mal iluminada fica cheia até tarde da noite, com crianças correndo e pacientes em macas. Ali, o médico Rijal, suspeitando que algo estivesse errado, perguntou à mulher recém-chegada o que aconteceu. Ela havia fugido de casa depois que o marido a espancou.
O médico e uma enfermeira conduziram a mulher a uma sala privada e fecharam a porta. Eles seguiram o roteiro habitual. O abuso não é normal ou inevitável, disseram à vítima. Há opções, reforçaram.
Momentos depois, ela foi levada pela enfermeira ao centro de crise, uma ala separada do hospital onde os pacientes que enfrentam abusos podem conversar com conselheiras e uma policial.
A violência praticada pelo parceiro geralmente provoca problemas de saúde a longo prazo. E o consultório médico é geralmente o primeiro – se não o único – local onde alguém pode não apenas notar o problema mas também ter conhecimento e autoridade para ajudar.
Muitos governos não priorizam a intervenção nos locais de saúde. Mas o Nepal, cujos índices de violência doméstica estão entre os mais altos do mundo, está numa lista crescente de países que vêm tomando medidas, como instalar serviços de apoio dentro de hospitais e oferecer treinamento para identificar e encaminhar pacientes vítimas de abuso.
No Brasil, uma lei federal garante atendimento médico e psicológico às vítimas de violência sexual em todos os hospitais integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS). O texto prevê que as unidades de saúde prestem cuidados das lesões e medidas para se evitar a gravidez e a contaminação de doenças sexualmente transmissíveis. Em dezembro, a Câmara dos Deputados aprovou uma proposta que obriga o agressor a ressarcir o SUS pelos custos com o tratamento da vítima. O texto seguiu para o Senado.
Mulheres vítimas de violência doméstica podem ainda buscar apoio em casas de acolhimento, que geralmente são gerenciadas por prefeituras, governos estaduais ou institutos. No Rio de Janeiro, por exemplo, há o Centro Especializado de Atendimento à Mulher Chiquinha Gonzaga e o Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa. E em São Paulo, funcionam os Centros de Cidadania da Mulher.
Tão comum quanto asma e diabetes
Embora a violência do parceiro possa acontecer com qualquer um, as mulheres são proporcionalmente mais afetadas. No mundo, quase um terço das mulheres que estão em relacionamentos já sofreram casos violência física ou sexual de seu parceiro. Esse tipo de violência é pior em países que estão vivendo ou se recuperando de conflitos, como a República Democrática do Congo e o norte de Uganda. Embora o comportamento esteja mudando, estudos sugerem que a situação é mais aceita em países da Ásia, da África e da Oceania.
Mas a situação não ocorre apenas no mundo em desenvolvimento. Um terço das mulheres na Dinamarca e pouco menos de 30% das do Reino Unido dizem ter experienciado violência de seu parceiro pelo menos uma vez na vida, por exemplo. Nos Estados Unidos, 32% das mulheres experienciaram violência física de seus parceiros, e 16%, violência sexual; e 4% sofreram violência física, e 2%, violência sexual, no último ano.
O impacto da violência na saúde feminina é enorme. Nos Estados Unidos, a violência do parceiro resulta em 2 milhões de feridos a cada ano, tornando este um problema de saúde maior do que a obesidade e o fumo. Ele é associado à dor crônica, asma, dificuldade para dormir, síndrome do intestino irritável, doença cardíaca, diabetes, derrame e doenças sexualmente transmissíveis. Mulheres que sofreram violência de um parceiro têm alto risco de suicídio e mais propensão a sofrer de depressão, ansiedade, ataques de pânico e transtorno de estresse pós-traumático.
Profissionais de saúde são geralmente os primeiros a entrar em contato com pessoas que sofrem abuso: nos Estados Unidos, por exemplo, as mulheres em relacionamentos abusivos visitam centros de saúde com frequência 2,5 vezes maior que outros pacientes.
Como 40% das vítimas de homicídio do sexo feminino são mortas por seus parceiros, a intervenção pode salvar suas vidas.
Um estudo que analisou 139 homicídios femininos ao longo de cinco anos na Cidade do Kansas, nos EUA, descobriu que quase um quarto dos homicídios (34) estavam relacionados à violência doméstica. Dessas, 15 mulheres foram à emergência – 14 delas com ferimentos – até dois anos antes de serem mortas. Em uma pesquisa recente com 1.554 vítimas atendidas pela polícia após violência doméstica, 88% delas relataram ter sobrevivido a uma tentativa anterior de estrangulamento.
Treinamento profissional insuficiente
Mas os profissionais de saúde estão frequentemente despreparados para ajudar as pacientes. No Reino Unido, um estudo de 2017 descobriu que a maioria dos treinamentos médicos não cobre adequadamente a violência praticada por parceiros.
Embora o Lei de Cuidados Acessíveis nos Estados Unidos determine que mais planos de seguro atentem à triagem e ao aconselhamento de pacientes que enfrentam violência, o governo dos EUA ainda não tem um protocolo nacional.
O treinamento de profissionais médicos para identificar e encaminhar pacientes depende de como um país financia seu sistema de saúde, diz Kelsey Hegarty, médica da família e pesquisadora que ajuda a desenvolver intervenções de saúde na Austrália.
Os governos não podem exigir que instituições privadas treinem sua equipe para responder à violência praticada por parceiros, e muitos deles não financiam protocolos ou treinamentos. Como resultado, grupos da sociedade civil geralmente assumem a tarefa de desenvolver intervenções em serviços dentro de hospitais.
“Para algo que é tão comum quanto a asma e a diabetes e prejudica a saúde, esse cenário é perturbador”, diz Hegarty.
Não sensibilizar os profissionais de saúde tem consequências. Um estudo recente sugere que alguns desses trabalhadores do Líbano percebiam a violência como justificada se a mulher tivesse um comportamento agressivo. Sem surpresa, as pacientes não se sentiam à vontade para revelar o abuso.
No Nepal, onde quase metade das mulheres já sofreu alguma forma de abuso, pacientes temem que os profissionais de saúde riam ou as acusem de não serem “boas esposas”.
“A polícia nem ligou quando eu contei o que tinha acontecido comigo, então por que os médicos se importariam?”, diz Neha, que esteve em um casamento abusivo antes de visitar um centro de crise no Nepal. (Para proteger a segurança de mulheres entrevistadas, não usamos seus nomes reais).
Há debates sobre como os profissionais de saúde deveriam identificar pacientes como Neha. Alguns ativistas recomendam triagens nas quais os profissionais perguntem à paciente se ela sofreu abuso. Mas há poucas evidências sobre os benefícios disso.
Uma revisão de 11 estudos na revista científica British Medical Journal descobriu que o rastreamento ajudou a identificar pacientes que sofreram abuso, mas não necessariamente as ajudou a acessar serviços de apoio.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) desaconselha a triagem por profissionais de saúde em suas diretrizes sobre violência de gênero. Em vez disso, muitos especialistas sugerem abordagens como a adotada pelo Nepal.
A abordagem do Nepal
Em um centro de crise no hospital de Ghorahi, Maya estava encurvada em uma cama estreita com lençol azul-petróleo. Ela estivera na emergência um dia antes. Agora, ela está de volta para se encontrar com a conselheira Radha Paudel, que se agachou próxima a sua cama e notou uma série de hematomas subindo por seu braço. Em um travesseiro, estava uma folha de papel listando seus outros sintomas – dor de cabeça, hematoma na mão direita, inchaço em sua cabeça, dor no peito e nas costas.
“Você veio antes com seu marido, também”, disse Radha quase num sussurro. “Meu marido não quis vir hoje”, disse Maya. Ele ficou em casa tomando conta das crianças.
Meses antes, Maya tinha prestado uma queixa contra seu marido – que foi preso por um período curto – e deu entrada no divórcio com a ajuda de Sabita Thapa, oficial de polícia que trabalha em tempo integral no centro de crise. Radha conectou Maya com o grupo de mulheres locais para ajudá-la a estabelecer uma fonte independente de recursos.
O atendimento a Maya reflete uma resposta de saúde que ainda não é a ideal, mas está em evolução. Embora Maya ainda enfrente abuso, o centro de crise a conectou a diversos serviços. Seu marido se mudou e o divórcio tramita na Justiça.
O Nepal abriu seu primeiro centro de crise em 2011 nas regiões central e do extremo-oeste e continua a instalá-los em hospitais ao redor do país. Em 2015, o governo desenvolveu um protocolo para ajudar profissionais de saúde a identificar e encaminhar mais pacientes aos centros de crise, os quais receberam apoio técnico da ONG Jhpiego e do Fundo de População das Nações Unidas. Hoje ele é financiado pelo governo.
Centenas de profissionais de saúde já foram treinados, incluindo, por exemplo, ginecologistas e médicos da família em pequenos postos de saúde.
No hospital de Ghorahi, especialistas acreditam que esta abordagem multifacetada ajudou a aumentar o número de mulheres denunciando o abuso e recebendo aconselhamento e apoio legal. Em 2013, apenas 74 mulheres denunciaram o abuso em hospitais. Em 2017, esse número saltou para 493 mulheres.
Embora a maioria delas vá aos hospitais para denunciar o abuso por conta própria, a cada ano aumenta o número de enfermeiras e médicos encaminhando pacientes para conselheiros.
“Trabalhadores de saúde tinham medo de lidar com esses casos”, diz Saroja Pande, uma das médicas que ajudou a desenvolver o protocolo. “Elas eram encaminhadas aos serviços, mas ficavam traumatizadas e desistiam do acompanhamento. Ficavam em casa e desenvolviam depressão. Algumas se suicidavam”.
O treinamento atual é mais abrangente. Ele inclui um misto de teoria, jogos e cenários de dramatização, incluindo uma simulação de um tribunal, para preparar os funcionários de saúde a como reagir se forem chamados para apresentar provas.
Empatia e preconceito
Outro objetivo da abordagem nepalesa é disseminar a empatia. Os médicos são encorajados a reconhecer e questionar preconceitos que existem sobre os abusos. Em uma sessão, os treinadores perguntam se eles acreditam que uma mulher usando short é agredida por causa de sua roupa. Eles aproveitam a oportunidade para quebrar mitos sobre o que motiva os agressores.
Ishwor Prasad Upadhyaya, coordenador de treinamento, quer que os profissionais de saúde pensem em seu trabalho para além de apenas um emprego. “Dizemos a eles que se você não puder servir uma sobrevivente do fundo do seu coração, então não toque no caso delas”, diz ele. “Se não pode servi-las, mande-as para outro profissional.”
Outros países têm abordagens parecidas. Modelos de crise existem em centros de saúde de Ruanda, Guatemala, Índia, Reino Unido, Malásia, África do Sul e Colômbia, entre outros. O governo da Jordânia tem um protocolo para profissionais e clínicas de saúde reprodutiva, como o Profamilia, da República Dominicana, que seleciona pacientes de violência de gênero.
Mas essas abordagens ainda enfrentam muitos desafios. Especialistas concordam que somente treinar os profissionais de saúde não é suficiente se o país não tiver um forte serviço de apoio funcionando, incluindo abrigos. Mas, no Nepal, assim como em muitos países, os abrigos sofrem com a falta de financiamento, as vítimas de abuso doméstico só podem ficar ali por apenas por um curto período e há escassez em zonas rurais.
No hospital em Ghorahi, podem ocorrer atrasos no acompanhamento de pacientes, o que pode reduzir as chance de elas buscarem os serviços de apoio. Muitas mulheres também optam por aconselhamento familiar em vez de registrar queixas na polícia contra seus maridos, devido à falta de apoio financeiro e familiar.
Os policiais no Nepal frequentemente estimulam a mediação como uma alternativa ao processo, mas pesquisas nos Estados Unidos sugerem que isso pode aumentar o risco.
Ao redor do mundo, a taxa de burnout dos profissionais de saúde envolvidos com esse tipo de trabalho é alta, diz Upala Devi, coordenadora de violência de gênero do fundo da ONU. “Esse avanço no tema é muito positivo e bem-vindo. Mas resta muito o que se fazer.”
Como profissionais sem treinamento podem ajudar
Especialistas concordam que mesmo os profissionais de saúde sem treinamento específico podem ajudar a identificar e encaminhar pacientes que sofreram abusos.
Hegarty tem apenas um conselho: ler as diretrizes da OMS sobre como responder à violência de gênero, com sugestões baseadas em evidências. E mais importante, as diretrizes listam as coisas que um profissional de saúde deveria considerar antes de perguntar a uma paciente se ela sofre abuso, como ter certeza de que é o local é privado, garantir a confidencialidade, seguir um protocolo e encaminhar o paciente a serviços de apoio.
De preferência, o profissional deve ser treinado sobre como perguntar com sensibilidade sobre o abuso. Em situações em que isso não é possível, porém, as diretrizes explicam como ouvir, perguntar sobre as necessidades e validar as experiências do paciente.
No Nepal, os profissionais de saúde observam os pacientes que chegam com sintomas vagos ou que não correspondem aos do exame. Eles também observam seu comportamento e o daqueles que os acompanham. Se uma paciente parece deprimida ou responde a perguntas de forma errática, um profissional de saúde deve considerar perguntar-lhes sobre seus relacionamentos ou encaminhá-los a um conselheiro qualificado. Se o membro da família ou cônjuge que acompanha a paciente se recusar a deixá-la sozinha com um profissional de saúde, isso também pode sinalizar o abuso.
Jinan Usta, médico que desenvolveu o treinamento para profissionais de saúde no Líbano, diz que é importante ter planos de segurança se os pacientes preferirem continuar com seus agressores. Primeiro, os médicos devem perguntar à paciente se a violência aumentou com o tempo, e se há armas de fogo ou outros instrumentos pontiagudos ao redor. Se houver, ele recomenda que os pacientes saiam de casa imediatamente quando o agressor começar a agir de forma violenta.
Há várias outras medidas de segurança: evite se esconder em espaços fechados, tenha um número no celular de alguém para quem você possa ligar imediatamente, oculte instrumentos afiados e mantenha a porta da frente de sua casa desbloqueada para que você possa sair rapidamente.
Usta acredita que ouvir os sobreviventes de abuso doméstico têm seu próprio poder. “Basta ouvir as mulheres e fazê-las sentir que não estão sozinhas nisso”, diz ela.
Sabita concorda. Em uma tarde recente, ela entrou no centro de crise em Ghorahi durante uma tempestade e sentou-se em um canto, observando a equipe fazendo um trabalho burocrático.
Há três anos, ela denunciou o abuso. Agora, ela frequenta o local para aconselhamento. Ela voltou a morar com o marido, mas diz que o abuso parou logo depois que a equipe do centro de crise ajudou a organizar seu tratamento para a depressão. Ela regularmente encaminha outras mulheres ao centro de crise.
“Eles nos tratam melhor do que nossas mães e nossos pais”, diz ela.
Fonte: Terra