Em pleno Julho das Pretas, mês que marca a luta das mulheres negras latino-americanas e caribenhas, o debate sobre saúde mental ganha centralidade nas discussões por justiça social e bem viver. Para Edlamar França, psicanalista e pesquisadora, é impossível pensar o sofrimento psíquico de mulheres negras sem considerar as estruturas de desigualdade de gênero, raça e classe que marcam profundamente suas vidas.
“As mulheres negras são a base da pirâmide social. Enfrentam jornadas exaustivas, violências múltiplas e a negação constante de direitos. Isso impacta diretamente sua saúde mental”, explica Edlamar.
Segundo dados de saúde pública, mulheres negras são as que mais sofrem com doenças crônicas, mortalidade materna, violência e desigualdade no acesso a exames e diagnósticos. Mas para além das estatísticas, elas carregam no corpo e na mente os efeitos do racismo e do machismo diários — muitas vezes sem encontrar escuta adequada nos espaços terapêuticos.
Psicanálise ainda é brancocêntrica — e isso precisa mudar
A crítica da psicanalista vai ao cerne da formação do campo psicanalítico no Brasil. “A psicanálise ainda opera sob uma lógica europeia, branca e heteronormativa. Isso apaga nossas origens africanas e indígenas na constituição do inconsciente brasileiro”, afirma Edlamar.
Inspirada em intelectuais como Lélia Gonzalez, ela atua na construção de uma psicanálise amefricana — termo cunhado por Gonzalez para nomear uma América marcada pelas presenças negras e indígenas. Essa abordagem propõe uma escuta que reconhece as marcas da colonialidade e do racismo como estruturantes do sofrimento psíquico da população negra.
“Quando não se reconhece o racismo como produtor de adoecimento, o cuidado se torna ineficaz e, muitas vezes, violento. A escuta psicanalítica precisa se reorientar a partir das vivências e cosmopercepções dos povos negros e indígenas”, completa.
Amefricanidade como furo no discurso colonizador
Para Edlamar, a amefricanidade não é só um conceito: é uma chave de ruptura. “Lélia Gonzalez nos obriga a pensar a subjetividade de forma plural. Nossos inconscientes também são formados pelas experiências negras, pelas línguas que nos atravessam, pelos saberes ancestrais que resistem.”
Nesse sentido, figuras como a mãe preta — da mucama do passado à babá de hoje — estão no centro da constituição emocional e cultural da sociedade brasileira, mesmo que sistematicamente apagadas.
Respostas precisam ser coletivas e políticas
A saúde mental das mulheres negras não será garantida apenas dentro dos consultórios. Segundo Edlamar, é urgente pensar respostas estruturais: “Se o sofrimento é coletivo, a saída também precisa ser. É a mobilização social que pressiona por políticas públicas eficazes e por espaços de acolhimento e escuta.”
Ela também critica a resistência da branquitude psicanalítica em reconhecer o racismo como uma questão central no cuidado em saúde mental. “É preciso romper com a escuta que não se afeta, que não se responsabiliza historicamente.”
Psicanálise Bô Kibunda: escutando os corpos amefricanos
Como parte dessa construção coletiva, Edlamar integra um grupo de psicanalistas que lançou a Revista de Psicanálise Bô Kibunda, espaço que reúne saberes negros e indígenas no campo do cuidado. O grupo também realiza um ciclo de debates abertos ao público para discutir a formação psíquica de sujeitos amefricanos.
“Queremos construir uma psicanálise que fale a nossa língua, que ouça nossos orikis e que acolha os traumas causados por séculos de exclusão. É tempo de transformar o cuidado em instrumento de reparação.”
Fonte: Brasil de Fato