Relatório do Think Olga mostra a importância de fazer um recorte de gênero sobre a pandemia. Maíra Liguori, diretora da organização, comenta principais pontos da pesquisa
(Celina/Globo, 15/04/2020 – acesse no site de origem)
“Num contexto de crise humanitária, não haverá um futuro feminino se, no presente, as mulheres forem menosprezadas.” Assim começa o manifesto divulgado pelas organizações Think Olga e Think Eva, que produziram um relatório sobre os principais impactos da crise gerada pelo coronavírus na vida das mulheres.
Em momentos de emergência como o que estamos vivendo, provocado pela pandemia de Covid-19, grupos vulneráveis são ainda mais afetados pelo agravamento de problemas que já enfrentam diariamente. Por isso, o relatório “Mulheres em Tempos de Pandemia: os agravantes de desigualdades, os catalisadores de mudanças” busca reunir os principais desafios enfrentados pela população feminina nesse período, com o objetivo de fortalecer a pauta de gênero, disseminar soluções já existentes e orientar novas políticas para preservar os direitos das mulheres.
“Não é só a saúde pública que está em risco, mas também o futuro das mulheres. Conceitos como equidade, segurança, autonomia e independência femininas, que se manifestaram em tantas ações e projetos nos últimos anos no Brasil, estão sendo descartados rapidamente como questões supérfluas diante da crise causada pela pandemia”, afirma um trecho do documento.
O relatório é dividido em três temas principais. O primeiro é a violência doméstica, um problema grave no Brasil que é potencializado no período de isolamento domiciliar, no qual as vítimas ficam mais expostas aos agressores e podem ter mais dificuldades em buscar ajuda ou mesmo para realizar denúncias. O segundo aspecto é a economia e trabalho. “A crise econômica agrava ainda mais a situação de mulheres em trabalho informal, pequenas e médio empreendedoras, mães e mulheres em empregos mal-remunerados”, diz o estudo.
Por último, é analisado o eixo da saúde. De acordo com o relatório, mulheres representam 56% dos idosos no Brasil, que fazem parte do grupo de risco do coronavírus. Elas também estão na linha de frente dos cuidados aos infectados, tanto no quadro dos profissionais de saúde, no qual são maioria, quanto no cuidado em casa, com a família.
Em entrevista à CELINA, a diretora da organização Think Olga Maíra Liguori falou sobre o relatório e explicou qual a importância de um olhar sobre a população feminina nesse período:
Por que é importante fazer um recorte de gênero sobre a pandemia de coronavírus?
É um olhar extremamente importante porque é a primeira vez que temos a chance de falar sobre isso enquanto o problema está acontecendo. Nunca antes na história uma crise humanitária pode ser olhada pelo viés de gênero enquanto acontecia. Em todos os períodos de crise as mulheres sempre arcaram com consequências mais severas do que a população em geral, porém os conteúdos e ações vinham apenas depois, para mitigar os estragos. Entendemos que dessa vez agir rápido e colocar essas questões enquanto os problemas ainda estão em curso pode nos ajudar a pensar estratégias e propor caminhos para evitar um impacto tão grande.
Estudamos por exemplo o caso do ebola na África para entender o que aconteceu com a vida das mulheres após uma crise como aquela, que se assemelha em muitas questões com a que estamos vivendo hoje. São momentos de perda de direitos, de extrema vulnerabilidade e desassistência, onde as mulheres centralizam os cuidados, seja nas redes de saúde, em casa com os doentes que não estão hospitalizados, ou no cuidado com os idosos e crianças ainda que não doentes. Tudo isso se sobrepõe à carga do trabalho e aos afazeres domésticos. São questões que têm um peso e uma consequência muito mais grave em períodos como esse. Existe uma despriorização da pauta feminina nesse momento, que afeta transversalmente, seja nos direitos já conquistados ou nas desigualdades que ainda existem.
O objetivo do relatório é colocar essas questões em pauta para estimular políticas que preservem os direitos das mulheres?
Exatamente. Vimos muitas notícias sobre o aumento dos casos de violência doméstica em diversos lugares. Aconteceu na China, na Itália, na França e está acontecendo no Brasil. Esse é um dado alarmante e muito preocupante que precisa ser confrontado no sentido de buscar amparo para essas mulheres hoje, agora, e não depois que a pandemia passar. Mas também existem vários outros, que estão ainda debaixo do tapete. Buscamos colocar esse e outros dados à luz, de forma que eles possam ser usados para pautar o poder público e conscientizar a sociedade civil. Entendemos que já existe muita gente relevante fazendo ações importantes, ONGs e projetos sociais que estão no campo encontrando caminhos e soluções. Então esse report também tem esse objetivo: potencializar essas organizações com incentivos, doações, voluntariado, visibilidade.
Mesmo quando falamos sobre mulheres, ainda é importante fazer recortes para pensar nos grupos mais vulneráveis nesse momento?
Sim, estamos falando sobre mulheres negras, que moram na periferia, de baixa renda ou com doenças pré-existentes.Tudo isso se sobrepõe à questão do gênero em si.
O relatório é dividido em três temas centrais: violência doméstica, economia e trabalho e saúde. Por que essas áreas foram escolhidas?
Nos alinhamos a partir da Conferência de Pequim, que mapeou os principais territórios onde a desigualdade de gênero precisa ser combatida. Essa declaração está completando 25 anos esse ano, e vimos que não tivemos muitos avanços. Olhando para as áreas que foram detectadas nesse relatório, vimos o que se aplica hoje no contexto de pandemia e escolhemos essas três áreas como emergenciais e prioritárias. Não quer dizer que outras também não vão ser abordadas, mas nesse report a violência contra a mulher, economia e saúde foram nossos principais eixos, por entendermos que são os mais urgentes e graves no momento.
Entre todos esses problemas agravados pela crise, vocês também apontam que essa pode ser uma oportunidade para governos, empresas e sociedade civil “botarem a mão na massa”. Esse seria um momento para promovermos mudanças?
É isso o que a gente gostaria de promover. Os problemas estão acontecendo agora, e sabemos disso. Por isso terminamos o manifesto com essa provocação: e agora que você sabe? Como sociedade civil, empresário, governo, o que você vai fazer? Vemos que é uma oportunidade, principalmente se temos um olhar de coletividade, mas também de pressão. Mais do que nunca é hora de usarmos nossos poderes dentro das áreas que nos cabem para pressionar as pessoas que seriam os responsáveis pela solução, ou pelo menos mitigação, desses problemas. Pressionando governos, ativistas, marcas. Aí entra também outro viés: há quanto tempo as marcas vêm mostrando o poder feminino e a beleza do girl power? Agora que as mulheres estão em situação de vulnerabilidade, o que essas mesmas marcas vão fazer? Por isso achamos que é um momento de crise e que potencializa as desigualdades mas também é uma chance de atuarmos, uma chance que historicamente não tivemos ainda.
Por Raphaela Ramos