“Tenho 30 anos, mas sou negra há apenas dez”. A frase com que a jornalista Bianca Santana abre o livro Quando me descobri negra (Sesi-SP) explica em apenas nove palavras a tal Consciência Negra de que trata o feriado e que ainda é motivo de debate tão extenso.
Professora universitária, autora de livro didático e feminista, ela diz que, infelizmente, boa parte da população não nomeia o racismo e acaba sofrendo: “Quando você ainda não tem uma consciência negra, se pergunta: o que será que fiz de errado?”.
Na entrevista, Bianca fala sobre o processo de descoberta da sua identidade negra, sobre como a própria família tem dificuldade de assumir-se negra e sobre o preconceito sentido cotidianamente
Carta Educação: Estamos para comemorar o dia da Consciência Negra. Quando aconteceu a sua?
Bianca Santana: Foi um processo longo. Falando assim, do quando, às vezes remete a um imediatismo que nunca aconteceu. Começa na universidade, com leituras, provocações dos professores para que a gente escrevesse das nossas origens e se conectou com outras experiências como a que conto do livro, o episódio da Educafro (o entrevistador de professores voluntários disse que ela seria uma ótima referência para os alunos por ser negra). Tenho um colega branco que tem uma formação muito parecida com a minha e também tinha se voluntariado. Comentei como foram receptivos e ele contou que com ele não foram. Primeiro pensei, que estranho, por que será? Depois, pensei e acho que sei porque: ele foi tratado como eu sou em todos os outros lugares.
CE: O livro ilustra principalmente casos de pessoas que sofrem um racismo menos explícito. Por que a escolha?
BS: Quando alguém publica um termo racista na foto da Taís Araújo é muito obvio. As situações do livro são sutis para quem não vivencia. Dão margem para interpretação ambígua, alguém pode dizer que houve confusão por causa da roupa, ou que o outro não está em um bom dia, mas para quem vivencia é escancarado que não depende de variável. Pode soar como um racismo velado, para quem não sente, mas no dia a dia não é nada sútil. Eu sinto assim na maior parte do tempo. São aquelas situações que, quando você ainda não tem uma consciência negra, se pergunta: o que será que fiz de errado? Antes do click, não necessariamente você consegue nomear que é racismo. Não que não percebesse antes, só não nomeava.
CE: Você acha que é comum que muitas pessoas se descubram negras tardiamente ou mesmo passem a vida sem se descobrir?
BS: Infelizmente sim. No Brasil, vivemos sob o mito da democracia racial e não se fala sobre racismo e ser negro. Aparece no contexto escolar de jeito pouco profundo e não conectado, se fala da escravidão como se fosse algo no passado distante, como se não tivesse conexão como algo atual. O tempo todo você vê o fato de ser negro como negativo, muita gente passa pela vida sem se conectar com isso.
CE: No livro você fala de exemplos da sua família. Faltava esta nomeação?
BS: Minha avó não falava a respeito. Na família da minha mãe meu avô é descendente de italiano, mas minha mãe e meu tio são negros, cada um tem uma cor de pele e um cabelo. Meu pai tem a pele mais clara que a minha, mas se você olhar o documento dele está definido como pardo. Para minha família ele era branco, mas esta não era a leitura feita pela polícia ou por quem preenche o documento. Muitas vezes, quando você está com outros negros, junta fatores como cabelo, classe social e alguém é lido como negro outro como não negro. Quando vai para um ambiente de brancos ou mais ricos, a leitura é outra. É como a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie diz: quer saber se alguém é negro, observe a reação do segurança de supermercado. Mas as pessoas às vezes preferem não ver isso.
CE: Pode dar um exemplo?
BS: Minha mãe. No lançamento do livro, a gente fez um círculo na Casa de Lua com mulheres negras dando depoimentos. Ela deu o dela e falou assim: “O menor dos meus problemas é ser negra porque meu pai saiu de casa quando eu tinha dois meses, fui babá com 5 anos, lutei muito para fazer curso superior e quando fui trabalhar em uma multinacional já me disseram que eu tinha que alisar o cabelo e seria sempre operacional. Com esta história de vida, o menor dos meus problemas é ser negra”. Ela não entende que isso tudo é conectado com o fato de ser negra.
CE: Qual o ambiente mais racista que você frequenta?
BS: O meu bairro, do Sumaré, pertinho de Perdizes, de longe é o lugar mais racista que frequento. Trabalho na Academia, onde este debate está colocado. Até ocorre preconceito também, como o caso que cito no livro de estar preparando uma palestra e acharem que eu estava mexendo no projetor sem autorização, mas, na minha vizinhança, é muito mais comum. Moro nesta casa há 3 anos e não conheço todos os vizinhos, como acho que é normal. Outro dia entraram na casa da vizinha e, quando percebi, o movimento fui ver. Era uma senhora, perguntei se queria água e ela me media de cima abaixo e ficava tentando me ler. Eu via que ela se perguntava: será que trabalha com esta roupa? Para a gente, é evidente o racismo mesmo quando não é falado.
CE: Como é sua reação?
BS: Dá uma preguiça da pessoa. Uma vez estava na fila de cliente preferencial no banco e um senhor veio me apontar a fila comum. Eu respondi que estava vendo. Ele insistiu, eu expliquei que estava ali porque era cliente preferencial. O pior é que a pessoa percebe e se sente motivada a conversar depois. Não tenho a menor vontade de conversar com estas pessoas.
CE: Você fala no cabelo e acessórios que reafirma sua identidade. Qual a importância disso?
BS: O cabelo é muito marcante para várias mulheres e homens também. Passei a infância e a adolescência usando cabelo preso. Às vezes as pessoas falavam que queriam ver solto e eu pensava: esta pessoa não tem noção do que está falando. Eu tinha desespero. Cresci sempre falando do cabelo ruim, feio. Minha mãe sempre alisou o dela a vida toda. Usava ferro de passar, esquentava no fogão, secador. Na minha infância, ela já não fazia assim e lembro dela falar que tinha nojo da casa das pessoas cheia de cabelo no fogão. Quando eu fazia escova, todos elogiavam, principalmente os meninos, mas eu queria tirar logo aquilo. Então, achava horrível o crespo e desconectado de mim o alisado. No processo de tomada de consciência negra eu cortei curto e, como não me acostumei com ele solto, fazia rolinhos porque tinha conexão com negritude. Até na terapia eu falava isso. Usei assim por 10 anos até que há dois anos adotei o turbante.
CE: O que acha da moda do turbante e do uso por pessoas brancas e de cabelo liso?
BS: Acho uma maravilha as pessoas usarem. Cultura pressupõe apropriação. Se a gente disputa a hegemonia, precisa comemorar que se reconheça como bonito, válido. Quanto mais gente usar, mais vai ser aceito eu usar sem receber o olhar estranho. Se toda esta luta foi para proibir quem é de um jeito de usar, acho que a gente devia parar. Lógico que tem o limite do respeito, mas tornar um padrão de beleza válido é positivo. Sinceramente não quero fazer algo para proibir ninguém.
CE: No capítulo “O racismo nosso de todo dia escancarado nbo meu cabelo” você fala que todos os dias é lembrada de que há um lugar para negros. Isso é uma força de expressão ou literal? Você poderia contar a história de hoje?
BS: Eu venho para o trabalho de ônibus, normalmente é a hora que as empregadas estão chegando. Vem o olhar de espanto. Já me aconteceu de perguntarem se eu era enfermeira e cuidava de algum idoso ali perto. Não encaixa para as pessoas ser negra e ainda usar transporte público e querer morar ali. Normalmente não entendem a roupa, o jeito do cabelo. É um racismo de estranhamento, o mais comum.
CE: Como está a situação do racismo no Brasil hoje? Houve melhoras, quais?
BS: Acho que a grande melhora é o que estamos fazendo agora: a gente falar sobre isso. A quantidade de publicações, os seminários, isso é um avanço. Os indicadores sociais que hoje são dados com a divisão da cor de pele. Fora isso, só olhar para ver que a gente é muito racista ainda, até as consultas do atendimento pré-natal duram menos tempo para negras. O acesso à universidade, por exemplo, que melhorou devido às cotas, mesmo assim 26% de quem está no ensino superior é negro. É pouco, apesar dos avanços. Os indicadores mostram sim uma melhora, mas ainda é pequeno. Obviamente é pequeno, 300 anos de escravidão e 127 de abolição na maior parte sem política reparativa. O caminho é longo.
CE: Você também é feminista. Como racismo e feminismo se conectam?
BS: Tem muita conexão. Muito do que construí, das leituras do que construí do racismo vem de leituras e teorias de mulheres negras. Nos Estados Unidos tem o black feminism, da Angela Davis, por exemplo, e por aqui a Sueli Carneiro e agora a Djamila Ribeiro, tem falado destes feminismo interseccional, da desigualdade racial que se sobrepõe a desigualdade de gênero. A vida de todas as mulheres não é igual. Mesmo entre as brancas pobres e ricas, percebemos uma distância grande. Sou uma mulher negra, mas as minhas dificuldades não se comparam a vida de uma mulher negra pobre. As vezes parece que falar da diferença nos enfraquece ou divide. Não é verdade. Eu posso ser uma mulher branca e rica e lutar por todas e a mulher negra e pobre pode lutar por todas.