A discussão sobre a reforma administrativa do Estado brasileiro voltou ao centro do debate político com a criação de um grupo de trabalho na Câmara dos Deputados. Entre os principais temas estão o fim dos supersalários, a reestruturação de carreiras, a avaliação de desempenho e a modernização dos concursos públicos. No entanto, um aspecto fundamental segue sendo negligenciado: a promoção da equidade de gênero e raça, especialmente em cargos de liderança no serviço público.
Mulheres e a escalada no serviço público: ainda um desafio
Os dados mostram uma clara desigualdade. Embora as mulheres ocupem 50,1% dos cargos de média liderança na administração pública federal, sua presença despenca para apenas 31,9% nos postos mais altos e estratégicos, como secretarias executivas e subchefias. Quando se recorta por raça, a situação é ainda mais grave: apenas 10,6% dessas posições são ocupadas por mulheres negras.
Isso contrasta com o nível de qualificação dessas mulheres. De acordo com a Escola Nacional de Administração Pública (Enap), mulheres brancas e negras têm escolaridade mais elevada do que homens em recortes raciais equivalentes. Entre os servidores com doutorado, por exemplo, 40% são mulheres brancas (contra 32% de homens brancos) e 15% são mulheres negras (contra 12% de homens negros).
Diversidade importa — e impacta resultados
A diversidade no serviço público não é apenas uma questão de justiça social. Ela é fundamental para garantir que as políticas públicas estejam alinhadas às necessidades da sociedade brasileira, formada majoritariamente por mulheres (51,5%) e pessoas negras (55,5%), segundo o Censo 2022.
Apesar de ainda serem minoria na força de trabalho do Executivo federal (41,6%), as mulheres vêm ganhando espaço. Nos últimos cinco anos, 53,6% das novas vagas foram ocupadas por elas. Mas a pergunta permanece: que tipo de ambiente essas mulheres estão encontrando ao ingressar no serviço público?
Barreiras invisíveis, mas persistentes
Estudos recentes revelam os obstáculos. Pesquisa da cientista política Michelle Fernandez (UnB), encomendada pelo Movimento Pessoas à Frente, apontou que 45,7% das servidoras entrevistadas identificam o desrespeito e o assédio moral como barreiras para a ascensão profissional. Além disso, 71,4% relataram dificuldades para conciliar o trabalho com as responsabilidades familiares e a maternidade.
O painel “Resolveu?”, da Controladoria-Geral da União, registrou mais de 6 mil denúncias de assédio em 2024 no Executivo federal — número que pode ser até cinco vezes maior, segundo estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Avanços recentes e caminhos possíveis
Algumas ações têm sido adotadas. O Ministério da Gestão e da Inovação anunciou, por exemplo, medidas para aumentar a equidade de gênero no Concurso Público Nacional Unificado (CPNU), garantindo que pelo menos 50% das vagas da segunda fase sejam ocupadas por mulheres.
Outra iniciativa importante foi a sanção da Lei nº 15.177/2025, que reserva 30% das vagas nos conselhos de administração de estatais para mulheres — com inclusão de cotas específicas para mulheres negras e com deficiência.
Ainda assim, o Brasil ocupa a última posição na América Latina em participação feminina na liderança de cargos públicos, de acordo com levantamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Liderar com representatividade é dever do Estado
A presença de mulheres, especialmente negras, em cargos de decisão não é apenas simbólica — ela é um requisito para fortalecer a legitimidade democrática e garantir que o Estado seja representativo e efetivo. Essa perspectiva está alinhada a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como a Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção 190 da OIT, que trata do assédio e da violência no mundo do trabalho.
Diante da iminente reforma administrativa, é essencial que não se perca de vista essa pauta. A transformação do Estado brasileiro precisa estar baseada nas melhores práticas de gestão de pessoas, reconhecendo as desigualdades e construindo caminhos para corrigi-las. Promover lideranças diversas e ambientes seguros para todas as servidoras deve ser prioridade — porque equidade também é qualidade no serviço público.
O Estado precisa ser exemplo. E o momento de agir é agora.
Fonte: Nexo Jornal