Luiza Souto
Da Universa
A analista de RH Camila*, de 34 anos, foi mãe de primeira viagem há oito meses e ainda está na fase do “tenho que esperar a neném dormir para falar com você, senão não consigo”, mas diz que tem sido a maior experiência da vida. A fala da paulistana vem com uma serenidade que parece atípica para quem nasceu sem útero e teve a bebê após o primeiro transplante do órgão feito no Brasil, há dois anos. Ainda se adaptando a tanta novidade, ela prefere curtir a família no anonimato.
Enquanto as amigas de Camila menstruavam no início da adolescência, ela comemorava, sem estranhar, o fato de nunca ter que passar pela fase. Aos 14 anos, no entanto, a mãe a levou para fazer uma ultrassonografia e dois médicos disseram não ter conseguido localizar seu útero porque a paciente estava com gases. Ela conta que se encheu de remédio para tratar o problema, mas quando repetiu o exame ouviu a mesma coisa. Deixou para lá.
Perto do casamento, aos 25 anos, procurou uma ginecologista para ter certeza de que, apesar da aparente anomalia, poderia gerar filhos. Foi quando descobriu a síndrome de Rokitansky, caracterizada por uma má formação do órgão sexual feminino, como vagina encurtada ou até ausência dela, e inexistência de útero, que é o caso de Camila. No desespero, pensou em não mais subir ao altar:
“O mundo cai. Abre um buraco. Me senti culpada, castigada por Deus. Todo mundo fala que ser mãe é uma dádiva, mas digo para as amigas não repetirem isso porque dá a impressão de que a mulher que não pode ter filho não é merecedora. Todas somos”.
Mais calma, Camila buscou pesquisas sobre a doença e chegou a uma inscrição no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo, para um transplante de útero. Quatro meses após entrevistas e bateria de exames, entre consultas com psicólogo e assistente social, a equipe médica escolheu a paciente e logo coletou seus óvulos, assim como o material do marido, para a fertilização. Foram oito embriões no total.
O transplante, com duração de cerca de 10h, aconteceu em setembro de 2016, e a inseminação veio seis meses depois. A confirmação da gravidez chegou semanas após a primeira tentativa. Camila pôde, enfim, sentir a menstruação. “Foi maravilhoso. Parecia uma adolescente. Me sujava, não sabia direito comprar o absorvente no início”, relembra ela, rindo.
Sem sentir enjoos típicos da gravidez, mas muito sono, ela relata que tomou diariamente cerca de 30 comprimidos contra a rejeição do útero, como imunossupressores. A criança nasceu de 36 semanas, quando o normal é de 38 a 42 semanas, de cesariana.
“Nunca tive medo ou dúvidas de que daria certo, mas quando ela nasceu, fui contar os dedinhos da mão para saber se existia defeitinho. Ela veio perfeita, chorou normalmente. É a cara do pai. Foi mágico”
A mãe ainda ficou mais 8h na sala de cirurgia para a retirada do útero. A medida foi tomada para que ela pudesse parar com os imunossupressores e amamentar. Hoje, conta, tem tanto leite que até doa.
Ela veio perfeita, chorou normalmente. É a cara do pai. Foi mágico
A cirurgia
Foram duas cirurgias de transplante de útero no Brasil feitas até agora, e a primeira no mundo realizada com doadora falecida. A segunda paciente operada no HC apresentou entupimento nos vasos do órgão transplantado e ele precisou ser retirado dois dias após o procedimento. Somente no Brasil, Estados Unidos e Suécia mulheres transplantadas conseguiram ter seus filhos. Não há previsão para novas cirurgias no HC.
Numa estimativa mundial, uma em cada 500 mulheres pode ter algum problema no útero que atrapalha a gravidez. Uma a cada quatro mil nasce sem o órgão. Se pegar a população de São Paulo, teríamos 1,5 mil mulheres que nasceram sem útero e em idade fértil.
O primeiro caso de transplante de útero de uma doadora viva em que a mãe teve o bebê no mundo foi publicado na Suécia em 2014. De lá para cá, foram nove pacientes pelo mundo e sete delas deram à luz. A recomendação é que se utilize úteros de doadoras com até 57 anos. Em todos os casos, foi usado um óvulo da própria paciente.
No Brasil, os estudos no HC começaram no final de 2013, com uma equipe 100% brasileira. Optou-se por utilizar um útero de uma doadora falecida, pela primeira vez no mundo, para que os riscos cirúrgicos fossem reduzidos.
Um dos responsáveis pela cirurgia é o ginecologista Dani Ejzenberg, supervisor do Centro de Reprodução Humana do HC. Segundo ele, somente o útero é transplantado, e, por isso, a gravidez só poderia acontecer por fertilização. Além disso, o parto tem que ser sempre cesariana para não prejudicar as ligaduras vasculares. O fato de o bebê nascer com 36 semanas, explica ele, está previsto na pesquisa.
Transplante em transexuais
Em entrevista recente à Universa, a jogadora de vôlei transexual Tifanny Abreu afirmou estar acompanhando as pesquisas. Ela revelou vontade de ser mãe. Ejzenberg explicou, no entanto, não haver consulta do tipo. Segundo ele, seria preciso uma “mudança grande” da técnica já aplicada, uma vez que o formato da pelve masculina é diferente da feminina, além de questões hormonais:
“Não sabemos como seria a gestação, como o bebê se adaptaria nessa situação. No momento, não foi feita pesquisa sobre isso, mas poderia ser feita no futuro”
Fonte: Universa