No mês de agosto, aclamam a conquista da lei Maria da Penha, usam a sua imagem, mas apagam, literalmente, a sua cadeira
Muitos paralelos existem entre os significados sociais atribuídos aos corpos femininos e os corpos com deficiência. Tanto o corpo feminino quanto o das pessoas com deficiência são considerados historicamente desviantes e inferiores; ambos são definidos a partir de uma lógica social, cultural e econômica e, por isso, categorizados a partir de uma norma.
Entretanto, a discursiva equação que desvincula o feminino da deficiência nunca deixou de ser comum. Tais nexos estão alicerçados na ideia socialmente naturalizada da deficiência como um corpo biológico disfuncional e socialmente invalidado. Essa construção tem consequências graves e diárias, implícitas e explícitas.
Um exemplo são as perguntas constantes sobre a sexualidade da mulher com deficiência: ela transa, sente prazer, fica grávida, alguém pode amá-la, é lésbica? Ou ainda, as dúvidas onipresentes sobre a possibilidade de uma vida com deficiência gerar ou cuidar de outrem, as quais respaldadas no argumento eugênico de um trabalho de tratamento bioético social, esterilizam essas mulheres.
Esses exemplos ilustram o fato de que tudo que se refere à essencialização do feminino, mas se choca com a realidade de mulheres com deficiência, coaduna-se proporcionalmente com um julgamento de “impossibilidade social de existência”. Isto porque rompe com o ideário de corpo e indica a representação do oposto ao empregado pelo autogoverno, autodeterminação, autonomia e progresso fundantes na ideologia neoliberal.
Assim, a incompreensão sobre a temática e, de certo, o reforço da ideia de infantilização, inutilidade e oposição ao livre-arbítrio, desviam atenção do fato de que muitas mulheres adquirem uma lesão ou impedimento por terem vivenciado violência de gênero e passam a ser mulheres com deficiência, ou se tornam mães e cuidadoras de filhos ou filhas com deficiência.
O que me leva a escrever a óbvia conclusão de que apesar da deficiência ser uma estranha no meio, substancialmente é amiga próxima e ignorada das denúncias do patriarcado. No mês de agosto, aclamam a conquista da lei Maria da Penha, usam a sua imagem, mas apagam, literalmente, a sua cadeira de rodas da comemoração. Obviamente isso não é uma falta de atenção, mas um grave marcador social repleto de contradições que são determinantes – mesmo aos grupos que lutam contra o patriarcado – e subvertem esta condição à ótica da rejeição, uma espécie de “soco no estômago” que vira doença social, sinônimo de isolamento.
Não há espaços e acomodações nas discussões sobre e, principalmente, com o que representam os corpos das mulheres com deficiência ou que a vivenciam de outra maneira, através dos seus filhos ou filhas. O resultado disso, no final das contas, são essas mulheres sofrendo violência de gênero e conjugando suas vidas com descasos, mortes, despojo, encabeçando a lista dos maus-tratos e estupros, justificados arbitrariamente pela ideia vulgar e egocêntrica de caridade.
O ideal seria que os corpos de mulheres com deficiência fossem acolhidos nas lutas anticapitalistas como um ícone de afronta à própria norma, quase como um sinônimo de subversão e recusa à lógica neoliberal. Mas ao que me parece, a retórica da autossuficiência só leva a compreensão dessas vidas a partir da ótica da tragédia pessoal que precisa ser apagada, escondida, recortada, porque afinal de contas, “não sei lidar”, ou “não conheço ninguém assim”.
Proeminente ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, Judy Heumann, com raiva externalizou em palavras pontiagudas ao comparecer em uma reunião de mulheres militantes: “Então, eu entro em uma sala cheia de feministas e tudo o que veem é uma cadeira de rodas?”.
Mais do que uma crítica, esse texto se trata do apontamento de uma necessidade: precisamos trazer para a centralidade das discussões feministas a deficiência como pauta porque antes de mais nada ela se funde nas injustiças sociais e é através de mulheres subversivas como Rosa Luxemburgo, Frida, Maria da Penha (todas com deficiência) que estabelecemos a própria desordem.
A existência destas é a própria ameaça constante à norma, uma recusa da lógica subordinada de ideal. Violar a norma é ser anticapacitista.
*Viviane Sarmento é doutora em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Professora Adjunta da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE), pesquisadora sobre os significados sociais da deficiência e militante pelos Direitos da pessoa com deficiência e pela Marcha Mundial Mulheres (MMM).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: Brasil de Fato