Na República Democrática do Congo (RDC), milhares de mulheres e meninas seguem pagando um preço alto pela presença internacional que prometeu protegê-las. Desde o fim dos anos 1990, a Missão de Estabilização da Organização das Nações Unidas na República Democrática do Congo (Monusco) enfrenta denúncias graves de exploração e abuso sexual.
Kamate Bibiche é uma dessas mulheres. Hoje, vive em Birere, um assentamento de casas de chapa de ferro em Goma, no leste do país. Seu filho, Dimitri (nome fictício), de 12 anos, se esconde dentro de casa para evitar o bullying de outras crianças por sua pele mais clara e cabelos cacheados — herança do pai russo que ele nunca conheceu.
Kamate se lembra com dor do breve relacionamento com Yuriy, um agente de paz russo da ONU. Durante três meses, ela acreditou que ele ficaria ao seu lado. “Ele sabia que eu estava grávida e prometeu cuidar de nós. Mas desapareceu sem dizer uma palavra”, conta. Seu único vestígio são uma foto e um chapéu militar guardados numa caixa embaixo da cama.
Apesar de ter consentido na relação, a ONU reconhece — desde 2005 — que qualquer relação entre agentes de missão e comunidade local é considerada exploratória. O desequilíbrio de poder, em um contexto de extrema vulnerabilidade, torna qualquer “consentimento” questionável.
Relações desiguais, consequências permanentes
Maria Masika (nome fictício), outra vítima, também carrega sozinha o peso de uma história semelhante. Aos 17 anos, engravidou de um soldado sul-africano lotado próximo à base de Minugugi. Hoje, sustenta a filha, Queen, de apenas 8 anos, enquanto arrisca a própria vida como profissional do sexo para sobreviver. “Ele sabia que eu era menor de idade”, diz Maria, que perdeu contato com o agente após o nascimento da filha.
Casos como o de Kamate e Maria se repetem em Goma, uma região devastada por conflitos armados. A violência, a pobreza extrema e o deslocamento forçado de milhões de pessoas expõem mulheres e meninas a situações de exploração que se perpetuam por gerações.
Segundo o abrigo Congolese Family for Joy, ao menos cinco crianças abrigadas nasceram de relacionamentos exploratórios entre soldados da Monusco e mulheres locais — filhos que, muitas vezes, acabam abandonados pelas próprias mães, que sofrem estigma e são forçadas à prostituição para sobreviver.
Impunidade e falta de justiça
Organizações de defesa dos direitos das mulheres, como a Sofepadi, denunciam a ausência de responsabilização. A ONU não possui autoridade direta para processar os autores desses crimes — cabe aos Estados membros investigar e julgar seus soldados, algo que raramente ocorre.
Um relatório recente da ONU revela um aumento preocupante: em 2023, foram registradas 100 denúncias de abuso e exploração sexual em missões de paz e políticas especiais — 66 delas ligadas diretamente à Monusco. O número de vítimas chegou a 143, incluindo 28 crianças.
Apesar da política de “tolerância zero” e dos programas de assistência, muitas vítimas sequer têm acesso às informações sobre seus direitos ou a rede de apoio prometida. Enquanto isso, para crianças como Dimitri e Queen, resta crescer carregando as marcas de uma história que deveria ter sido diferente.
Silêncio que ecoa
Em meio a promessas de paz, o silêncio de quem deveria proteger continua deixando mães e filhos à margem. Um legado doloroso que exige, mais do que discursos, justiça real — e responsabilidade de todos os países que enviam agentes para “manter a paz”.
Fonte: G1