O feminismo é um movimento busca abrir espaço e voz para as mulheres. No entanto, o quanto a mulher indígena é lembrada nessa conta? Desconsiderados pelas pessoas e pelo país, terras e vidas indígenas são ameaçadas cotidianamente, apesar de seus saberes e grandes contribuições à sociedade como um todo. Como elas encaram essa situação?
Entrevistamos Linda Terena, indígena do povo Terena do Mato Grosso do Sul. Ela é professora, doutoranda e mestra pela PUC-SP e nos contou um pouco sobre a pauta das indígenas. Pois afinal, existe um feminismo entre elas?
Quais as principais reivindicações dos indígenas atualmente?
Temos uma diversidade de povos indígenas. Falar dos 305 povos é desafiador! Entre as pautas há uma mais gritante que é a demarcação do território. O espaço que possuímos hoje não comporta mais a demografia indígena de forma à sua sobrevivência digna, humana e justa. Nossa história neste país é marcada por violência e resistência. A quem interessa saber, o país foi construído em cima do holocausto de povos originários, pois neste chão já havia dono. A luta pela terra é histórica, e originária desde o século XVI com a chegada dos puxârara – europeus.
Além da questão territorial, as demais pautas pela melhoria da qualidade da educação nas aldeias – que é ineficaz – e o atendimento à saúde – que é muito precário, com várias pessoas indo a óbito – são também emergenciais. A educação foi construída aos moldes ocidentais que, na década de 1913, foi introduzida por missionários norte-americanos de um lado e pelos agentes do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) do outro. No caso dos primeiros, a educação era carregada de cristianização, alterando nossa crença e nossa cultura. Já o ensino dado pelo governo era carregado de racismo e preconceitos vindos dos próprios professores enviados. Então vemos aí dois tipos de educação à qual fomos submetidos. Essa é a realidade vivida não só pelos Terena, mas por todos os indígenas, sob o pretexto da busca da “civilização” e “integração” à sociedade nacional.
Por quais motivos vocês acreditam que a pauta indígena seja tão negligenciada?
Creio que não somos considerados parte dos interesses do governo, somos vistos como entraves. E o índio, no mais tosco do termo, continua sendo um ser “insignificante” que deve continuar a “viver lá no mato” e não atrapalhar a exploração da terra em nome do “progresso”. A sociedade não consegue enxergar que ele é um cidadão brasileiro e que o seu modo de vida e hábitos estão também em constante transformação. No imaginário brasileiro a imagem do indígena é a mesma do século XVI.
Quais os princípios base do pensamento indígena?
A sabedoria ancestral, a cosmologia indígena, a forma como vemos o mundo em sua totalidade, o respeito à natureza, os saberes medicinais, os valores, o respeito com o próximo e principalmente com os mais velhos. Esses são fatores convergentes entre os povos, que englobam diversos saberes. E esses conhecimentos estão entre os velhos, bibliotecas vivas, e que não são encontrados nas universidades. É essa sabedoria que nos mantém resistentes até hoje enquanto povo na sua diversidade.
Qual a importância da terra e da propriedade para o indígena?
Não existe propriedade no mundo indígena. Existe a natureza mãe, que é para todos, em uso e fruto coletivo. Não agredimos a terra, por ela ser nossa mãe e irmã. Ela é uma fomentadora da sobrevivência humana, já que dela tiramos a vida. Não se explora a terra para usufruto individual, visando o enriquecimento e o consumo, como fazem os não indígenas.
Como a mitologia nativa retrata a mulher?
Há uma diversidade mitológica e cada povo tem seus mitos. Mas eu acho muito interessante e propício à reflexão a forma como os mitos nativos retratam a mulher. Se formos fazer um apanhado de mitos indígenas, geralmente vamos nos deparar com uma desfiguração da mulher no sentido de desvalorizá-la, alterando sua essência. Como no mito das flautas Jakui (Kamaiurá) em que os homens, invejosos, roubaram esses itens sagrados das mulheres, e as proíbem de tocá-las. E para sustentarem isso, dizem que há muito tempo houve uma mulher que viu a flauta, na aldeia Waurá, e todos os homens tiveram relações sexuais com ela. E com isso, foi abandonada pelo marido.
Uma outra versão é que a mulher morreu por não suportar tantas relações num mesmo dia. Um exemplo muito nítido foi a mim relatado recentemente pela parente Sandra Guarani. Ela relatou um mito de seu povo contado na versão masculina e outro na versão feminina, que é totalmente oposta, em que homens a contam colocando a mulher responsável por um mal feito.
Vemos, portanto, a busca pela inferioridade feminina, e o homem se apropriando disso para empoderamento próprio. Tenhamos muita cautela sobre isso. Sejamos sábias. Questionemos por que os mitos foram criados. Nossos ancestrais a contavam da mesma forma? Será que não houve uma alteração com o tempo e principalmente no pós-contato durante a colonização? É algo para se pensar. E para revolucionar mais, pensando enquanto indígena e de um corpo biologicamente do sexo feminino, precisamos (re)criar nossos mitos num sentido de que haja um equilíbrio de igualdade, respaldado no respeito mútuo, entre ambos os sexos.
Existe machismo no meio indígena? Como vocês enxergam essa questão?
Existe e é muito forte entre os homens indígenas, mas o grau varia muito de povo para povo. O machismo intenso foi algo introduzido a partir do contato com o colonizador. Logo, é uma das epidemias trazidas na bagagem europeia e que nos contaminou. Antes desse contato invasivo e violento havia mais paridade na relação de gênero entre nossos ancestrais. Tenho conversado com alguns amigos antropólogos e indigenistas, como o professor Dr. Jorge Eremites de Oliveira, e uma de suas colocações me chamou a atenção: o machismo não veio da senzala, e sim da casa grande. É fato!
Mas isso também não significa que as mulheres indígenas são intensamente violentadas, submissas ou oprimidas. Há espaços de poder especialmente no âmbito doméstico, onde são donas. De certa forma, é um espaço precário por limitar a participação feminina na esfera externa. É comum reuniões externas em que os homens são os participantes mais ativos e donos do discurso, e nem sempre será no primeiro encontro que a questão em debate se resolverá. Outros momentos passarão até se chegar à conclusão, e isso não ocorre sem diálogo no âmbito familiar, onde a mulher está presente. Portanto, penso no espaço doméstico indígena como um espaço político feminino.
Ressalto em especial Enir Bezerra, do povo Terena, que foi a primeira mulher a ocupar o maior cargo político da cultura Terena, que é o cacicado. Ela quebrou o tabu da cultura Terena de que cacique é um cargo exclusivo masculino. Enir foi eleita por dois mandatos consecutivos democraticamente em sua comunidade, antes de falecer no meio do seu segundo mandato. Ela abriu espaços para que outras mulheres também ocupassem o cargo. Atualmente temos mulheres vice no cacicado, elas continuam buscando esse espaço para atuarem. Além dela, temos também a parente Sonia Guajajara, uma mulher indígena de grande atuação na organização da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
É possível existir um feminismo indígena?
Enquanto mulher indígena, desconheço a existência de um feminismo indígena. Esse é um termo de origem europeia do século XIX que foi ampliando suas reivindicações de acordo com as necessidades. Trazer esse modelo para o interior indígena não faz sentido tanto quanto o faz para as mulheres do mundo ocidental. A pegada de movimento das mulheres indígenas é outra, e sempre tenho frisado isso. Não nos reconhecemos nas pautas e nos moldes do feminismo ocidental, pois atuamos como feminino indígena.
A nossa bandeira de luta é outra. Quando reivindicamos algo não é somente para nós, mulheres, mas sim para a comunidade em geral. A busca da melhoria da saúde e pela demarcação territorial são a mesma coisa. Por mais silenciadas que as mulheres estiveram no pós-colonização, hoje elas estão aí nas mais variadas esferas públicas, na busca pelo bem-viver como garantia da sobrevivência e manutenção de seu povo.
Nos últimos anos tenho visto mulheres falando da violência que têm sofrido dentro e fora de suas aldeias. Um exemplo é o assédio sexual e moral enfrentado pelas Kaingang do sul, oriundo de homens não indígenas e também indígenas. Isso é uma situação grave que coloca a mulher às margens da violência. Outras têm manifestado sofrerem violência doméstica de seu cônjuge embriagado. Então vemos que o álcool é um fator também provocativo de agressão contra a mulher indígena dentro de suas comunidades. E até que ponto é viável acionar a Lei Maria da Penha, já que ela também não foi pensada para as mulheres indígenas? É um tanto complexo.
Gênero e universidade
É interessante abordar a temática “Gênero” enquanto indígena à medida que a universidade não responde minha inquietação. Isso se dá justamente porque não trazem a discussão de gênero em sociedades indígenas, há uma lacuna nos estudos dedicados ao tema. O feminismo ocidental tampouco trouxe respostas. As universidades são tão moldadas que não abordam a mulher na sua diversidade étnica num país multicultural! Os estudos partem de uma visão europeia e os brasileiros continuam propagando essa ideia burguesa e colonial.
O país é tão rico em diversidade cultural e saberes vindos pelos povos que existem e que já existiam. Mas é eurocêntrico e etnocêntrico até no fazer ciência. Se isso não é a continuidade de colonização, não sei como nominá-lo. Creio que as próprias instituições devam repensar sua política de ensino trazendo para dentro essas discussões tão necessárias, diante da crescente presença indígena nas academias.
Como vocês enxergam a mulher que não é indígena?
Não podemos vê-las diferentes de nós, apesar da diferença cultural se comparamos a nós indígenas. Mas são mulheres distintas em sua diversidade cultural e classe social. Mulheres que também lutaram para mudar sua história! Vejo que toda mulher, independente de raça, credo e cor, deve ser respeitada.
Fonte: Lado M