Proibição restringe acesso de mulheres a aborto nos casos legais, afirmam especialistas; audiência pública discutirá assunto nesta quinta-feira, 28 de março
(O Globo, 28/03/2019 – acesse no site de origem)
A proibição da venda de medicamentos abortivos — à base de misoprostol — em farmácias do Brasil, vigente desde 2005, não tem justificativas médicas ou legais. É isso o que afirma a Defensoria Pública da União, que realizará nesta quinta-feira, dia 28, em São Paulo, uma audiência pública para discutir o tema e propor novas resoluções à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O argumento é de que essa restrição viola o direito à saúde de mulheres que querem interromper gestações em casos já previstos por lei — estupro, feto anencéfalo e risco para a vida da mãe.
Hoje, remédios com o princípio ativo misoprostol só podem ser usados em hospitais. E não em qualquer hospital do país, mas apenas naqueles credenciados pelo Ministério da Saúde para a realização de aborto legal.
Um dos aspectos ressaltados pela Defensoria Pública é que essa proibição vai contra as mais recentes orientações da Organização Mundial da saúde (OMS), que publicou em janeiro deste ano guia chamado “Medical Management of Abortion”. Esse documento consolida o aborto medicamentoso como a estratégia mais segura e menos onerosa para o sistema público.
— A proibição da venda de misoprostol em farmácias é inconstitucional. Viola o direito à saúde. Esse tipo de venda precisa ser feito, sob prescrição médica e com retenção da receita nas drogarias. Nessa área, o Brasil está muito atrasado. O país não está de acordo com as melhores práticas internacionais para garantir o melhor tratamento possível para quem vai fazer aborto legal — afirma a defensora pública federal Fabiana Severo.
Ela lembra que mesmo países onde o aborto não é totalmente legal facilitam o acesso ao medicamento abortivo, para atender com mais rapidez os casos legalizados. Um exemplo é a vizinha Argentina, que possui uma legislação parecida com a do Brasil (permitindo o aborto em caso de estupro ou de risco para a saúde da mãe) e passou a vender o misoprostol nas farmácias em 2018.
— Nós fizemos o caminho oposto ao da Argentina: vendíamos o misoprostol em farmácias nos anos 1990 e início dos anos 2000, mas agora proibimos. É um retrocesso que precisa ser corrigido, e que já levou tempo demais. São resoluções proibitivas deste tipo que contribuem para o número tão alto de abortos no Brasil — destaca Fabiana, que atualmente cumpre um mandato de dois anos como defensora regional de Direitos Humanos em São Paulo.
Diversos países, entre desenvolvidos e em desenvolvimento, dispõem do medicamento em farmácias. Entre eles, Estados Unidos, Canadá, México e Índia.
Há, ainda, um estudo de 2017 feito em seis países da América do Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Peru e Uruguai) que concluiu que o Brasil é o que tem legislação mais restritiva e o único que não disponibiliza o misoprostol diretamente às mulheres (para venda em farmácias ou nos serviços de saúde). Essa pesquisa foi feita pelo Consórcio Latino-americano Contra o Aborto Inseguro (Clacai), com sede no Peru.
Até informações sobre remédio são restritas
A DPU enviou à Anvisa, em fins de fevereiro, uma recomendação de revisão de protocolos sobre esse tipo de medicamento. A maioria dos protocolos da agência sanitária sobre esse assunto tem mais de dez anos, sendo considerados desatualizados.
Um representante do setor técnico da Anvisa, Gustavo Mendes Lima Santos, está confirmado na audiência. Também participarão médicos e pesquisadores da área.
Além de discutir a venda em farmácias, a audiência também vai abordar o direito à informação sobre o misoprostol. Hoje, no Brasil, vigoram resoluções da Anvisa de 2006 e 2011 que vetam a divulgação de informações sobre esses medicamentos para “público leigo, por serem de venda sob prescrição médica e restrito ao uso de hospitais”. A DPU pede que essa norma seja derrubada.
Impacto na qualidade de vida das mulheres
Daniela Pedroso, psicóloga do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei do Hospital Pérola Byinton — a maior referência em aborto legal do país —, em São Paulo, ressalta que a falta de acesso ao misoprostol em farmácias e a falta de informação sobre o medicamento e sobre os serviços de aborto legal fazem com que muitas mulheres demorem demais a ter atendimento adequado.
— O maior prejuízo é que muitas mulheres tomam uma série de produtos que encontram no mercado negro, e que não são à base de misoprostol de verdade, e só quando eles não funcionam é que elas procuram um hospital. É um grande risco porque elas podem ter ingerido qualquer coisa — diz Daniela.
Ela explica que, caso o remédio volte a ser vendido em farmácias, as mulheres poderiam tomá-lo sozinhas, em casa, após prescrição médica com orientações sobre como e com que frequência ingerir.
Daniela também lembra que muitas gestantes nem sequer sabem em quais situações o aborto é legalizado no país.
— Em geral, é só depois de elas tentarem abortar por meios inseguros que elas descobrem que têm o direito garantido por lei, por exemplo, se engravidaram em consequência de um estupro. Boa parte da população não sabe das situações em que a lei garante o aborto. Muitas mulheres se expõem a um perigo em vão.
Clarissa Pains
Fonte: Agência Patrícia Galvão