A gravidez infantil entre meninas indígenas é um problema persistente no Brasil, resultado da combinação entre tradições culturais e a ausência de políticas públicas específicas de saúde. Diferentes etnias atribuem múltiplos significados à puberdade e à reprodução, tornando a gestação e o casamento entre crianças e adolescentes indígenas uma questão complexa, que envolve tanto aspectos biológicos quanto culturais.
Em algumas comunidades, meninas são prometidas em casamento entre parentes para preservar a etnia, suas tradições e conexões ancestrais. Em outros casos, rituais de passagem ligados à primeira menstruação preparam as meninas para a vida matrimonial e reprodutiva.
Segundo dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), entre 2015 e 2023, houve 916 nascimentos de meninas indígenas de 10 a 14 anos, em comparação com 131.719 nascimentos de meninas negras e 31.082 de meninas brancas na mesma faixa etária. Quando se analisa a proporção de nascimentos por grupo, a vulnerabilidade das meninas indígenas se destaca: 309 nascimentos a cada 10 mil nascidos vivos, quase cinco vezes mais que entre meninas negras (65 a cada 10 mil) e 12 vezes mais que entre meninas brancas (26 a cada 10 mil).
Cleocimara Reis Piratapuya, liderança do povo Piratapuya e coordenadora do Departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), ressalta a dificuldade de tratar o tema nas aldeias:
“Temos tentado trabalhar os direitos das mulheres indígenas, explicando que a gravidez e o casamento na infância não são normais. Mas, especialmente entre idosos e adultos, há muita resistência.”
No Alto Rio Negro, onde vivem 23 etnias indígenas, as práticas envolvendo casamento e reprodução precoce são mais comuns entre os grupos de recente contato. Para combater o problema, são realizadas rodas de conversa sobre violência contra a mulher, com participação masculina, mas ainda menos de 30% das aldeias foram alcançadas, segundo Cleocimara.
Jozi Kaigang, diretora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), alerta que a vulnerabilidade se agrava em territórios afetados por garimpo e extração ilegal de madeira, onde meninas indígenas são alvo de estupros, resultando em gestações forçadas.
Em 2023, levantamento do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) mostrou que o número de casos de violência sexual contra mulheres e meninas indígenas cresceu 297% de 2014 a 2023. Meninas abaixo de 14 anos representam metade das vítimas, enquanto menores de 18 anos somam 79% dos casos, caracterizando estupro de vulnerável.
A socióloga Pagu Rodrigues, da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência Contra Mulheres, reforça que a violência sexual não é parte da cultura indígena, mas um legado da violência patriarcal introduzida no período colonial:
“Em muitos territórios, ainda se naturaliza que meninas sejam vítimas de exploração sexual, sem perceber que isso é crime e violência.”
A Secretária Nacional de Articulação e Promoção dos Direitos Indígenas, Giovanna Mandulão, explica que o governo tem atuado para não naturalizar gestações precoces entre meninas indígenas, fortalecendo políticas de saúde que respeitem o corpo e o território das comunidades, e garantindo que meninas e mulheres possam escolher se querem ou não gestar.
Riscos à saúde
Especialistas alertam que meninas de 10 a 14 anos não estão fisicamente preparadas para a gravidez, aumentando o risco de mortalidade materna em 38%, segundo estimativa da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). O racismo estrutural torna meninas não brancas especialmente vulneráveis, reduzindo o acesso a aborto legal, pré-natal e apoio à maternidade precoce.
Márcia Castro, professora de Saúde Pública da Universidade Federal do Ceará (UFC), defende medidas específicas para proteger meninas indígenas:
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Fortalecer a política de saúde indígena, com mais recursos para atendimento em regiões remotas;
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Capacitar parteiras, doulas e pajés sobre os riscos da gravidez infantil;
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Garantir transporte e suporte para levantamento de gestantes, mesmo em áreas de difícil acesso.
“O objetivo é agir em defesa da vida dessas meninas, reduzindo os riscos que a maternidade precoce impõe à saúde e à vida delas”, conclui Castro.
Fonte: Gênero e Número