Congresso é Lugar de Mulher
BEATRIZ MONTESANTI*DO UOL, EM SÃO PAULO
Atualmente, as parlamentares representam pouco mais de 11% do Congressobrasileiro. O número, extremamente baixo se comparado com a proporção das mulheres na sociedade (51%, segundo o último Censo), coloca o Brasil em 156º lugar quanto à representação feminina em Parlamentos. Há 190 países nesse ranking, feito pela União Interparlamentar (IPU, na sigla em inglês, que abriga representantes eleitorais desses governos) e atualizado com dados eleitorais até setembro deste ano.
Os números mundiais são ruins de forma geral. Em apenas três países, as mulheres são maioria no Poder Legislativo: Ruanda, Cuba e Bolívia. Há uma paridade relativa em outras dez nações. No restante do planeta, elas continuam sendo minoria nas Casas Legislativas, ainda que sejam metade ou mais da população. Na lista internacional, são comparados Parlamentos unicamerais e câmaras baixas, como é a Câmara dos Deputados no Brasil.
Foi a presença majoritária de mulheres no Parlamento de Ruanda, por exemplo, que fez com que fosse aprovada uma lei sobre os direitos trabalhistas para grávidas. Na Argentina, elas foram responsáveis por medidas voltadas para a saúde sexual. No Brasil, tiveram papel fundamental na aprovação de políticas de combate à violência contra a mulher –como a Lei Maria da Penha.
“Quem faz lei e quem faz política pública para mulheres, no geral, são as mulheres”, resume Patrícia Rangel, pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo) e colaboradora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria. Para ela, quanto menos mulheres estiverem representadas na política, menos políticas que beneficiem as mulheres e corrijam as desigualdades de gênero vão existir.
As três pesquisadoras ouvidas pela reportagem explicam que essa discrepância tem diversos motivos. Entre as principais, estão a diferença entre os sexos no mercado de trabalho, modelos partidários e eleitorais desfavoráveis à inclusão feminina e a ausência de políticas de cotas –ou de cotas que funcionem efetivamente, como é o caso no Brasil.
Governos que atuaram para contornar essas causas tiveram um aumento expressivo de mulheres no Congresso. Foi o caso de nações escandinavas, como Suécia, Finlândia e Noruega, e latinas, como Bolívia, México e Argentina.
Em alguns países africanos, a boa colocação na lista também é explicada pela existência de conflitos duradouros que alteraram o balanço demográfico das regiões e favoreceram a implementação mais rápida de reformas políticas.
Por que é importante ter mulheres no Congresso?
Para a pesquisadora Patrícia Rangel, a primeira razão é de representatividade. “O que a literatura da ciência política aponta é que, em termos de representação política, o ideal é que o Parlamento seja um microcosmo, ou uma representação em miniatura, da composição de um país”, diz. “Quando olhamos para o nosso Parlamento, o que encontramos é uma distorção absurda: grupos econômicos estão sobre-representados, enquanto mulheres, negros e jovens são sub-representados.”
Beatriz Sanchez, pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política da USP, ressalta a questão da produção das leis. “Os homens, por não vivenciarem as mesmas coisas que as mulheres, não têm o mesmo olhar para questões relacionadas à desigualdade de gênero.”
Para Aili Mari Tripp, diretora do departamento de estudos de gêneros e mulheres da University of Wisconsin-Madison, nos EUA, há ainda uma importância simbólica: “Ver mulheres em posições de poder encoraja outras mulheres a buscarem papéis de liderança em mais áreas”.
Ruanda lidera lista
O topo do ranking de representação feminina em Parlamentos chama a atenção por ser ocupado por um país de baixa qualidade de vida e à margem do mundo desenvolvido: Ruanda.
A professora Aili Mari Tripp, especialista em estudos de mulheres e políticas da África, explica que dois fatores aumentaram a quantidade de mulheres no Parlamento ruandês: a adoção de políticas de cotas e um conflito entre duas etnias locais que perdurou por quatro anos, dizimando boa parte da população.
“O número de mulheres no Legislativo em toda a África triplicou entre 1990 e 2010 e isso aconteceu principalmente em países que passaram por grandes conflitos”, explica a professora ao UOL. Sua análise resultou no livro “Women and Power in Postconflict Africa” (Mulheres e poder na África pós-conflitos, em tradução livre), publicado em 2015 pela Cambridge University Press.
Segundo ela, o massacre entre tutsis e hutus acabou acelerando a adoção de reformas internas, que em outros Estados pacificados demoraram anos para serem implementadas. Ao menos 16 países africanos que passaram por uma guerra civil, evidenciado esse padrão.
“Na África, não apenas os países pós-conflitos embarcaram em reformas mais rapidamente do que aqueles que não tiveram guerras, mas eles também fizeram mais mudanças constitucionais e legislativas relacionadas ao direito das mulheres”, explica Tripp, ressaltando que mais mulheres ganharam poder nos gabinetes e nos governos locais. Como exemplo, ela cita a eleição a presidente de Ellen Johnson Sirleaf numa Libéria pós-guerra civil. Ela liderou o país de 2006 até janeiro deste ano.
Voltando a Ruanda, as primeiras eleições democráticas após a Guerra Civil (1990-1994) aconteceram em 2003. A Constituição, que passou a valer naquele ano, reservava 30% de cota para mulheres em posições elegíveis. Com a adoção da medida, esse número no Parlamento saltou de 4% em 1994 para 64% em 2015. Esse patamar está estabilizado nos dias atuais, com 61,3%.
A mudança permitiu a aprovação de leis relacionadas ao combate à violência contra a mulher, herança, direitos trabalhistas de mulheres grávidas ou que estejam amamentando, entre outros temas da pauta feminista. O eficaz modelo de Ruanda inspirou outros países do continente que não passaram por confrontos armados.
Em contrapartida, enfatiza a professora, o poder em Ruanda permanece na mão do partido governista, repressivo e controlado por homens: “Oposição política, incluindo de líderes mulheres, não é tolerada e pode ser duramente reprimida, particularmente dependendo da etnia em questão. Isso permanece uma barreira não apenas para mulheres, mas para cidadãos em geral”. Desde 2000, o país é presidido pelo tutsi Paul Kagame, atualmente em seu terceiro mandato.
Cuba e Bolívia estão em boas posições
Em Cuba, que ocupa a segunda posição no ranking, mais da metade do Parlamento unicameral é formado por mulheres. Elas têm 53,2% das cadeiras. Bolívia vem logo atrás na lista, com 53,1% das cadeiras na Câmara dos Deputados.
“Nesses países tivemos a combinação da função de governos com ideologias mais alinhadas a uma perspectiva de esquerda, mais amigáveis à igualdade de gênero”, afirma Patrícia Rangel.
Sanchez concorda com essa perspectiva: “Cuba tem a questão de ser um governo de esquerda, que historicamente tem uma ligação muito próxima com os movimentos feministas. Isso explica essa alta representação das mulheres no país”. No país, a elevada porcentagem de mulheres no Parlamento não resulta de políticas de cotas, mas de uma política voltada para a representatividade, implementada desde 1976, quando Fidel Castro (1926-2016) assumiu a Presidência.
Importante lembrar que, em Cuba, há apenas um partido, o PCC (Partido Comunista), e as eleições se dão de forma diferente. Eleitores vão às urnas para validar uma lista predefinida de candidatos para assumir as assembleias provinciais e a Assembleia Nacional.
Essa lista é definida por uma Comissão de Candidatura, formada por organizações sindicais e estudantis afins ao governo, e tem em nomes o número de cadeiras no Parlamento. Assim, os eleitores não escolhem entre vários nomes para ocupar um assento, mas, sim, se determinado candidato, ou no caso, candidata, irá ocupá-lo ou não. A princípio qualquer cidadão pode ser eleito, mas opositores ficam de fora.
A Bolívia, por sua vez, adotou em 2011 uma lei de cotas de gênero inspirada no modelo argentino, com mínimo de 30% para candidaturas em listas fechadas nas câmaras alta, baixa e também nos governos locais. A medida causou um crescimento expressivo feminino na Casa.
Soma-se a isso o fato de haver, no país, uma atuação muito forte dos movimentos indígenas liderados por mulheres. “Elas mesmas por vezes não se chamam de feministas, pois é uma concepção diferente do feminismo, mas esses movimentos têm uma força muito grande e se refletem tanto no Parlamento quanto na participação política das mulheres”, diz Sanchez.
Importante lembrar também que nesses países, assim como em Ruanda, apesar dos grandes avanços no sentido da representatividade feminina prevalece uma cultura de desigualdade e descriminação na vida cotidiana. Há ainda, portanto, obstáculos a serem superados.
O que explica o número baixo de mulheres?
Para as pesquisadoras, um ponto é fundamental e tem a ver com o mercado de trabalho. “As mulheres em geral acumulam duas jornadas de trabalho: uma remunerada, fora de casa, e uma não remunerada, dentro de casa. São as tarefas domésticas e do cuidado. Na medida em que um Estado não oferece equipamentos sociais para compartilhar essas tarefas [como creches e escolas em tempo integral], menores serão as chances de as mulheres se envolverem na política”, explica Rangel.
Essa igualdade de gênero é o principal motivo para que países nórdicos, por exemplo, se posicionem bem no ranking. Suécia, Finlândia e Noruega estão entre as 15 primeiras posições, todas com uma participação feminina superior a 40% das cadeiras no Legislativo.
Nos países em que a divisão entre gêneros permanece arraigada, as mulheres que conseguem ultrapassar essa barreira se deparam com outros problemas, como afalta de recursos e de apoio dentro dos partidos.
Lista aberta x lista fechada
O tipo de sistema eleitoral, aliado à adoção de políticas de cotas eficazes, é mais um fator determinante para a participação feminina.
Países como o Brasil utilizam o modelo de lista aberta, em que são os partidos que escolhem quais candidatos lançar. Em geral, as legendas tendem a apoiar e patrocinar as candidaturas masculinas.
Há modelos mistos, como Costa Rica e Argentina, que, embora adotem a representação proporcional para deputados, estabelecem listas fechadas com alternância de sexo. Ou seja, cada partido determina uma lista de nomes antes das eleições.
Na Argentina, a cada três nomes na lista, um deve ser de gênero distinto dos demais –se os dois primeiros candidatos são homens, o terceiro deve obrigatoriamente ser mulher, e assim por diante. A Argentina está hoje em 17º lugar no ranking de mulheres em Parlamentos, com uma representatividade três vezes maior do que a do Brasil.
Historicamente, o vizinho latino é pioneiro nessa questão. Foi o primeiro país a criar uma lei de cotas para mulheres, ainda em 1991. Na ocasião, foi estabelecido um mínimo de 30% de mulheres nas escolhas de cada partido. Em 2000, foi determinado que houvesse a alternância de sexo nas listas.
Razões para o Brasil estar tão mal colocado
Todos esses fatores destacados pelas especialistas no tema vão muito mal no Brasil.
“Falta uma cultura de igualdade de gênero, os partidos não estão comprometidos, o sistema eleitoral não beneficia [a inclusão das mulheres] e a divisão sexual do trabalho é absurdamente dramática”, elenca Rangel. A combinação faz com que as mulheres não disponham de tempo nem de recursos financeiros para as campanhas.
Em consequência, o Brasil tem menos mulheres no Congresso do que todos os seus colegas latino americanos. Tem, inclusive, menos mulheres no Congresso que a Arábia Saudita, país conhecido por uma cultura conservadora em relação a gênero e ao papel das mulheres.
Comparando por região, o índice brasileiro é pior que a média das Américas, da Ásia, da Europa e da África. O Brasil tem um dos piores índices de apresentação das mulheres não só no Parlamento, mas em todos os outros cargos que são escolhidos por eleição.
Desde 1995 existe uma política de cotas no Brasil. Segundo a lei, ao menos 30% das candidaturas de um partido devem ser femininas. A medida, no entanto, mostrou-se inócua. Embora tenha de fato aumentado o número de candidaturas femininas, ele não se converteu em porcentagens de mulheres eleitas.
Em boa parte, isso se deu devido a uma atitude dos próprios partidos. As cotas foram ao longo dos anos ocupadas por candidatas fantasmas ou “laranjas”, inscritas apenas para cumprir a norma.
O sistema de cotas no Brasil é sistematicamente violado e desrespeitado pelos partidos. Não adianta só ter cota, tem que ser uma cota que seja eficiente e bem empregada
Patrícia Rangel, pesquisadora da USP
Uma decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) de maio deste ano determinou que, a partir das eleições deste ano, partidos devem destinar ao menos 30% dos recursos de financiamento de campanha e do tempo de propaganda gratuita para candidaturas femininas.
A mudança é vista com bons olhos pelos movimentos feministas e de reivindicação de maior participação política para mulheres. Mas igualmente com certo grau de apreensão.
“As ações afirmativas para mulheres na política brasileira são uma caixinha de surpresa. Elas são boas, mas o que os partidos políticos fazem delas muitas vezes joga por terra o poder que elas têm de alterar as desigualdades”, diz Patrícia Rangel.
Beatriz Sanchez ressalta que muitos partidos já estão contornando a medida, lançando mulheres como vices em candidaturas para cargos majoritários e destinando os recursos para essas chapas –lideradas por homens. “Por conta disso, podemos de novo não observar uma maior representação política das mulheres”, diz.
O TSE não deixa claro se os recursos podem ser aplicados ou não em candidaturas majoritárias e já foi questionado sobre isso. Levantamento feito pela Folha e publicado no dia 28 de setembro mostrou que, sem as vices, ao menos 17 partidos não cumpririam a cota de fundos para financiar as candidaturas femininas.
Mudanças para as cotas
O UOL perguntou às pesquisadoras quais medidas seriam ideais para reverter o cenário brasileiro.
Para Sanchez, é necessário que a porcentagem de reserva seja feita nas cadeiras do Parlamento, e não nas candidaturas. Nessa linha, está atualmente parada no Senado a PEC 134/2015, que prevê 10% de vagas para as mulheres em todas as Casas Legislativas do país.
“Pode parecer inútil, por ser o que já temos hoje no Congresso, mas reservando 10% em todas as Casas Legislativas, incluindo as Assembleias e Câmaras Municipais, teríamos um aumento significativo nessa presença, pois em algumas cidades não temos sequer uma mulher como vereadora”, explica.
Rangel concorda que a reserva de assentos é mais eficiente do que a reserva de candidaturas, mas diz que a segunda opção pode ser suficiente, se for acompanhada de uma mudança no sistema eleitoral.
“Os dados têm mostrado que, no geral, as cotas para candidaturas acabam sendo suficientes para aumentar bastante a presença das mulheres nos Parlamentos”, diz ela. “Mas isso tem a ver com o sistema eleitoral. No Brasil, ainda não deu certo porque os partidos não respeitam essa orientação e também porque a lista aberta não permite uma preordenação.”
“É preciso que todas essas coisas estejam de mãos dadas para que a representação das mulheres surja”, conclui.
* Colaborou Talita Marchao, de São Paulo.
Publicado em 1 de outubro de 2018.
Edição: Lúcia Valentim Rodrigues; Ilustrações: Di Vasca; Infográficos: Gisele Pungan; Reportagem: Beatriz Montesanti.
Fonte: Uol