“Ele me agrediu. Disse que não era para contar para ninguém, que eu não iria respirar por muito tempo se contasse. Pensei que estava falando dos machucados. Depois de ver minha filha, percebi que mais uma vez ele tinha abusado dela.”
A empresária Lucia (nome fictício) fala da última vez que seu ex-companheiro, o português Paulo (nome fictício), trouxe a filha deles de volta para casa, em maio de 2015. Separados desde 2010, eles dividiam a guarda da menina em Tavira, Portugal.
Hoje, a brasileira vive uma batalha judicial para reaver a guarda da criança de 7 anos, passada provisoriamente a Paulo em fevereiro. Investigado por abuso sexual e acusado de violência doméstica, ele afirma que Lucia tenta separá-lo da menina.
O caso tornou-se símbolo no país do uso da alienação parental (situação em que um dos pais afastaria a criança do outro) por homens acusados de crimes sexuais ou violência em disputas judiciais.
Responsável pelo processo de guarda, a juíza Ana Mónica Pavão, do Tribunal de Menores e Família do Faro, entendeu que Lucia descumpriu o regime de visitas do pai e que os casos de abuso não foram comprovados (as investigações estão em andamento). A brasileira argumenta que, desde a última denúncia de agressão, em julho de 2015, vive numa casa de proteção a vítimas de violência, a 800 km de onde morava, o que impossibilitava as visitas.
No texto, a juíza afirma que o “comportamento processual da progenitora demonstra bem a sua firme vontade de afastar o progenitor da vida da filha”. Procurada, a magistrada negou entrevista.
O advogado de Paulo, Luis Miguel Amaral, defende a decisão da magistrada e diz que tudo foi “absolutamente transparente”. “Houve desde o início a intenção da mãe de afastar o pai da vida da criança, recorrendo a todo tipo de acusações.”
Polêmica, a decisão teve repercussão na mídia local e provocou protestos no país. Também levantou um debate em torno do suposto preconceito dos portugueses contra os brasileiros. Segundo a empresária, o ex-companheiro tentaria passar a imagem de que ela era “uma brasileira que veio cá para tentar melhorar a vida, arranjar um marido”. Apesar disso, afirma que os portugueses têm apoiado seu lado da história.
Por telefone, Paulo disse à BBC Brasil que não queria falar sobre o episódio: “Tive quatro anos e meio para tirar minha filha de uma louca, sua conterrânea.”
Do Brasil para Portugal
Nascida em Florianópolis (SC), Lucia foi para Portugal aos 17 anos, a convite do irmão mais velho, que tem no país um negócio de material de construção. Lá entrou para uma faculdade de engenharia civil, que não terminou.
Logo foi trabalhar na loja do irmão, onde conheceu Paulo. Começaram a namorar e depois de alguns anos foram morar juntos. Nesse período, Lucia fundou sua imobiliária, que tem até hoje.
Ela conta que o comportamento de Paulo mudou com a notícia da gravidez. Ele teria se tornado agressivo e compulsivo por limpeza. “Era capaz de me acordar no meio da noite por causa de um fio de cabelo no chão.”
A irmã de Lucia, Jacqueline Silva, ainda mora em Florianópolis e diz conhecer o que chama de modos violentos do ex-cunhado. Ela ficou três meses em Portugal após o nascimento da menina.
“Depois que a filha nasceu, ele começou a ter surtos psicóticos, paranoicos. Quando minha minha mãe ia visitar, ele chegava perto e ficava xingando-a bem baixinho.”
Do Brasil, a família tenta ajudar. Jacqueline diz que entrou em contato com a Defensoria Pública do Estado e com órgãos em Brasília e que procurou meios de comunicação locais. Fez também uma página no Facebook e uma petição online.
“Estamos muito tristes. É uma criança que a gente ama. Como vão matar a infância dela com uma atrocidade dessas? Quem deveria protegê-la não está fazendo isso. Todos os profissionais certificaram que a criança foi abusada e corre forte risco”, diz.
O Itamaraty está informado do caso e ofereceu consultoria jurídica à brasileira, que a negou por ter advogada própria. De acordo com a assessoria do ministério, este continua acompanhando os processos de perto.
Violência e abuso
A primeira denúncia de agressão veio em 2010, quando a filha do casal tinha poucos meses. Lucia conta que foi tirar o lixo e demorou mais do que o normal, porque ficou conversando com uma vizinha. Na volta, ela diz que Paulo a agrediu e trancou na cozinha.
Ela diz que conseguiu ligar para a polícia, que flagrou a situação. Os policiais aconselharam-na a fazer uma queixa, que depois foi arquivada por escolha de Lucia.
“Eu tinha direito ao procedimento criminal, a indenização, e desisti, porque ele era o pai da minha família. Naquela altura, não esperava que fossem acontecer essas coisas todas e tinha medo.” Hoje um outro processo por violência doméstica está em curso no Tribunal de Tavira.
No mesmo dia da agressão, passaram a viver separados, apesar de estarem na mesma casa. Quando Paulo se mudou, em 2011, estipulou-se que a filha passaria finais de semana alternados com ele.
Lucia diz que notou os primeiros sinais de abuso em 2012, quando a menina tinha três anos.
“Ela começou a falar coisas que não eram normais uma criança da idade dela falar. Chorava, não queria ir com o pai, não queria sentar…”
A empresária levou a filha até posto de saúde e, no dia seguinte à consulta, a psicóloga a chamou dizendo que já tinha encaminhado o caso às autoridades policiais.
No relatório, ao qual a BBC Brasil teve acesso, a psicóloga diz que a menina usava brinquedos para reproduzir a relação com o pai: despia as bonecas e colocava bonecos, que representariam o pai, em cima delas. A criança também teria dito que o pai era mau e procurava afastar o boneco nos jogos. No texto, a especialista diz que, dada a situação delicada, a guarda deveria permanecer com a mãe, “salvaguardando o bem-estar e a segurança da criança”.
Feito depois de 14 dias, o exame médico foi inconclusivo e a denúncia, arquivada. As visitas passaram a ser supervisionadas. Quando os peritos consideraram que a relação entre pai e criança estava normal, a supervisão acabou. Poucos meses depois, em 2015, Lucia diz que notou novamente comportamentos estranhos.
“Ela começou a chorar, dizer que estava com dor. Falava que a mamãe não podia entendê-la, que o papai não deixava ela contar. Depois disso, a menina contou para uma amiga minha. Tirou as roupas e mostrou a ela.”
Em 2015, um novo processo foi aberto.
Desta vez, o exame indicou uma vulvovaginite, inflamação que pode ser provocada tanto por doenças sexualmente transmissíveis como por falta de higiene – possibilidade destacada pela defesa do pai. No Tribunal de Tavira, há um processo contra a mãe por subtração de menores, em que Paulo a acusa de não oferecer à menina boas condições de vida.
Outros relatórios foram feitos a pedido da empresária e também descreveram brincadeiras de teor sexual. Além disso, segundo os psicólogos, a criança contava que tomava banhos com o pai, que mexia em partes do corpo dela. A menina teria dito que não reclamava das “brincadeiras”porque ele poderia ficar bravo.
Luis Miguel Amaral, advogado de Paulo, questiona a veracidade das análises e diz que outra, feita a pedido do tribunal e de forma “independente”, não mostrava qualquer sinal do crime. Apesar dos vários pedidos, a BBC Brasil não teve acesso a essas informações.
“O tribunal pediu relatórios independentes que não inferem a existência de abuso nenhum. É possível chegar a um psicólogo de um lugar qualquer e pedir um relatório. Há profissionais sérios e os que não o são.”
Sexismo na justiça
O caso levantou uma discussão na Justiça portuguesa sobre a popularização da “alienação parental” como argumento dos homens em disputas pelos filhos.
Para a advogada portuguesa Leonor Monteiro, o risco maior ocorre quando o argumento é usado para deslegitimar acusações de abuso e violência. Segundo ela, que atua em processos como o de Lucia, esse recurso vem se multiplicando no país e muitos magistrados teriam visões machistas sobre o tema.
“Há uma moda da alienação parental que está pegando em Portugal quando se alega abuso sexual ou violência. Isso acontece há cinco anos. Tem a ver com estereótipos de gênero, com o fato de se considerar a mulher mentirosa, querendo o filho só para si.”
Ela menciona a criação de associações de homens que promovem o que chamam de “igualdade parental”, segundo a qual os pais deveriam passar tanto tempo com as crianças quanto as mães – sem distinguir situações de violência ou abuso.
A advogada critica a decisão da magistrada Ana Mónica Pavão, responsável pelo caso de Lucia, e cita a Convenção de Istambul, que recomenda aos tribunais levar em consideração processos sobre violência e abuso ao atribuir a guarda de crianças. “Ela tinha que ter fundamentando (a decisão).”
Segundo Monteiro, a mudança no cenário passa por uma formação diferente dos juízes, que teriam pouco conhecimento sobre esses assuntos, o que está pedindo ao Conselho Superior de Magistratura.
Membro do conselho, o advogado Eduardo Vera-Cruz Pinto afirma que “existiram casos de acusações falsas feitas por mães”, as quais sustentaram a corrente doutrinária. Mas ressalta que a aplicação desse instrumento tem levado a decisões “dificilmente compreensíveis”.
“Os homens acusados aproveitam essa corrente para se defender. As generalizações sem estudo e prova suficiente têm determinado decisões judiciais dificilmente compreensíveis. Sobretudo quando é fundamental a precaução do julgador em defesa do menor.”
Sobre o conhecimento dos magistrados a respeito de violência doméstica e abuso, Vera-Cruz Pinto diz que eles procuram formação, mas isso ainda é insuficiente.
“A hierarquização de decisões, nos processos com estes problemas, é outro elemento que precisa de ser ensinado. (É preciso) apurar primeiro a veracidade das declarações das mães, com perícias rápidas e exaustivas e não com base em preconceitos ou doutrinas acadêmicas generalizadamente aceitas.”
Enquanto isso, Lucia aguarda os próximos passos do processo. Ela vê a filha uma vez por semana, por uma hora. “Ainda não tenho uma resposta.”
Fonte: BBC