Embora verifiquemos alguns avanços em matéria de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus nº 124.306, em que o Ministro Luís Roberto Barroso, acompanhado dos Ministros Rosa Weber e Edson Fachin, teceu inúmeras considerações a respeito da descriminalização do aborto no caso analisado, referida decisão, moderna e atual do Judiciário brasileiro veio acompanhada de um movimento e de crescente retrocesso por parte do Legislativo. Este anacronismo encontra-se materializado pela PEC 181/2011.
A PEC 181/2011 que inicialmente dizia respeito à ampliação de direitos trabalhistas, com o aumento do tempo da licença-maternidade para mulheres cujos filhos nasceram prematuros, por exemplo, e que aparentava ser um benefício para as mulheres, logo se transformou num pesadelo. Lamentavelmente, o Legislativo modificou o texto original em dezembro, o que levou a instalação de uma Comissão Especial para discutir o aborto.
Nesta Comissão passou-se a debater, então, formas de restringir ainda mais o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, proibindo o aborto em todas as circunstâncias até mesmo quando já autorizados pela legislação e jurisprudência brasileira, como no caso de estupro, gravidez de risco para gestante e anencefalia. Isto porque o parecer do Relator da Comissão Especial que discute a PEC, apresentou uma alteração aos artigos 1º e 5º da CF estendendo até o momento da concepção a inviolabilidade à vida, o que significa equiparar o embrião ao recém-nascido.
Como sabemos, além do novo caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal, a legislação brasileira vigente permite expressamente o aborto em duas situações específicas: quando a vítima sofreu um estupro ou há risco de morte da mulher[1]. Nestas duas hipóteses, a lei permite a prática do aborto legal, que deve ser prestado pelo sistema público e privado de saúde, de forma segura e integral, a todas as gestantes. A partir do precedente no STF de 2012, por 8 votos a 2, foi permitida a interrupção da gestação nos casos de anencefalia. Neste julgamento, os Ministros decidiram que os médicos que realizam a cirurgia e as gestantes que decidam interromper a gravidez não praticam crime. Assim deliberou o STF:[2]
“O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Senhores Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentavam condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo Ministro Celso de Mello; e contra os votos dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (Presidente), que a julgavam improcedente. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli. Plenário, 12.04.2012.”
O tema do aborto deve ser tratado sob a ótica da moderna jurisprudência pátria, que deve seguir as evidências científicas, a melhor tendência mundial de proteção à saúde, inclusive respeitando-se os tratados internacionais firmados pelo Brasil e a Constituição Federal. A Pesquisa Nacional do Aborto, realizada em 2010, pelo instituto Anis, concluiu que no Brasil pelo menos uma em cada cinco mulheres de até 40 anos já se submeteu à prática do aborto.[3] Por esta razão, não há como não concluirmos que o aborto é uma questão diretamente relacionada à saúde das mulheres brasileiras.
Ademais, conforme se observa na tendência mundial dos direitos sexuais e reprodutivos, há uma incongruência no argumento de que a criminalização possa diminuir o número de abortos, especialmente porque as pesquisas demonstram que, de um lado, nos países em que o aborto não é criminalizado, como no nosso vizinho Uruguai, por exemplo, caso seja praticado até o primeiro trimestre, houve uma queda expressiva no número de abortos, por outro lado, nos países que continuam proibindo o aborto, as taxas continuam muito elevadas.
Com efeito, desde o início da década de 1990, no âmbito da legislação nacional, foram editados muitos instrumentos legislativos visando garantir o atendimento na rede pública de saúde, aos casos de aborto legal. Isto foi possível em razão da intensa mobilização de diversos grupos de mulheres, em união com a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).[4] Cumpre destacar que o Ministério da Saúde editou duas normas técnicas a respeito deste tema: “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes” e a norma técnica: “Atenção humanizada ao abortamento”.[5] Estes instrumentos locais estão em consonância com o marco internacional de proteção às mulheres. A Convenção CEDAW em seu artigo 2º dispõe o seguinte: “Os Estados-parte condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a: f) Adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar leis, regulamentos, usos e práticas que constituam discriminação contra a mulher, além de g) Derrogar todas as disposições penais nacionais que constituam discriminação contra a mulher.” A legislação que criminaliza a mulher é visivelmente uma legislação discriminatória.
O Comitê CEDAW que monitora o cumprimento das obrigações da Convenção CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres) realizou a seguinte recomendação ao Estado Brasileiro:
“Agilizar a revisão da legislação que criminaliza o aborto, a fim de eliminar as disposições punitivas impostas às mulheres, como já recomendado pelo Comitê 9 (CEDAW/C/BRA/CO/6, parágrafo 3.); e colaborar com todos os intervenientes na discussão e análise do impacto do Estatuto do Nascituro, que restringe ainda mais os já estreitos motivos existentes que as mulheres façam abortos legais, antes da aprovação pelo Congresso Nacional do Estatuto do Nascituro”[6]
Portanto, com a referida manobra do Congresso Nacional pátrio, constituído majoritariamente por aqueles que não engravidam, não está observando a obrigação do Estado Brasileiro em cumprir com as disposições da Convenção CEDAW. O compromisso do Estado Brasileiro deve ser com o respeito à vida, a vida de milhares de meninas e mulheres que estão morrendo em razão de falta de acesso à saúde.
Como ocorre com uma grande parte da legislação pátria, o fato de existir uma legislação específica, bem como um tratado internacional ratificado pelo Estado do Brasil e uma decisão do STF, não garante necessariamente que esse direito das gestantes seja efetivado pelas instituições de saúde.
Com efeito, os serviços de aborto legal no Brasil vêm enfrentando obstáculos crescentes, em virtude das pressões exercidas por extratos conservadores da sociedade brasileira e determinados setores religiosos, em que pese à laicidade do Estado brasileiro. Antes existiam aproximadamente 65 serviços[7] que atendiam às gestantes que necessitavam realizar o procedimento de aborto legal, atualmente os números diminuíram sensivelmente para aproximadamente 30 serviços, muito embora não seja possível obter a informação exata acerca do número de serviços, por falta de registros formais.[8] A transparência a respeito do número de serviços, a sua distribuição regional (ou da inexistência destes serviços em determinadas regiões do Brasil) e o número de atendimentos em caso de aborto legal, também não se encontram sistematizados de forma eficiente, técnica e ampla, o que por si só já caracteriza uma omissão estatal no dever de prestar a assistência integral à saúde.
É preciso ter coragem para dar a visibilidade e a dimensão necessárias ao problema. Conforme Pesquisa Nacional sobre o aborto, uma em cada cinco mulheres brasileiras entre 18 e 29 anos já realizou aborto no Brasil.[9] A questão precisa ser tratada sob a ótica do direito à saúde, os avanços existentes não podem ser acompanhados de tantos retrocessos, em especial com violação das obrigações já assumidas pelo Estado Brasileiro, inclusive de diminuição da mortalidade materna, que não ocorrerá se não houver uma atenção à saúde das brasileiras, em especial às gestantes.
[1] Artigo 128, incisos I e II, do Código Penal.
[2] http://s.conjur.com.br/dl/acordao-interrupcao-gravidez-anencefalo.pdf
[3]DINIZ, Debora e MEDEIROS, Marcelo, Aborto no Brasil uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, http://www.scielo.br/pdf/csc/v15s1/002.pdf, 2/06/2017.
[4] SANTIN, Myrian, Sexualidade e Reprodução: da natureza aos direitos: a incidência da Igreja Cem viratólica na Tramitação do PL 20/91, aborto legal, e PL 1151/95, união civil de pessoas do mesmo sexo. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
[5] BRASIL, Ministério da Saúde, Norma Técnica, Brasília 2005.
[6] Observações Finais do Comitê CEDAW, http://www.spm.gov.br/assuntos/conselho/atas-das-reunioes/recomendacoes-vii-relatorio-cedaw-brasil, em 16/9/2017.
[7] http://oglobo.globo.com/brasil/brasil-tem-apenas-65-servicos-para-aborto-legal-10696828
[8] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/07/1796717-procuradoria-apura-omissao-do-estado-nos-servicos-de-aborto-legal-no-brasil.shtml
[9] DINIZ, Debora, MEDEIROS, Marcelo, Aborto no Brasil: uma Pesquisa Domiciliar com Técnica de Urna, ANIS, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Fabiana Dal’Ma é promotora de Justiça do MP/SP, mestre em Direitos Humanos pela UNSW (Austrália), vice- Presidente da ABMCJ-SP, diretora da APMP e membro do MPD.
Arte: Milagros Vitale
Fonte: Think Olga