Durante a Temporada França-Brasil, artistas negras vêm promovendo uma potente troca cultural e simbólica que une criação artística, memória ancestral e resistência anticolonial. Um desses encontros acontece na residência artística “Oceano Negro”, que será realizada em Salvador, e que propõe ser um espaço de cuidado, conexão e criação para mulheres negras da diáspora.
A coreógrafa e artista visual Ana Pi é uma das protagonistas dessa temporada. Com seu espetáculo Atomic Joy (Alegria Atômica), ela convida o público a refletir sobre a potência das danças negras de rua como forma de resistência e comunicação ancestral. “Imagina se a gente tivesse decidido não dançar”, provoca Ana, ao questionar a ausência dos ritmos negros que embalam o mundo: samba, salsa, hip hop, jazz, funk.
Ana Pi, brasileira radicada na França, é reconhecida por seu trabalho que cruza dança urbana, pedagogia e artes visuais. Em Atomic Joy, ela fala de batalhas — individuais, coletivas e simbólicas — e da alegria como um ato político. Para a artista, essa alegria não é ingênua nem alienada, mas cheia de tensão e resistência. “Dentro dessa tensão do que é alegria, tem a palavra resistência”, afirma.
A ideia do “atômico” também atravessa a criação: ora como força explosiva, ora como expressão da delicadeza, da fragilidade, daquilo que é quase invisível, mas essencial. O espetáculo é parte da programação oficial da Temporada França-Brasil e traz à cena dançarinos e movimentos forjados nas ruas, mostrando que a arte pulsa em cada periferia.
Cultura como reencontro com a ancestralidade
A temporada também marca o retorno da escultora franco-camaronesa Beya Gille Gacha ao Brasil. A artista, que integra o projeto Oceano Negro, encontrou no território baiano não só um espaço de criação, mas também o fio condutor para acessar suas origens africanas.
Em uma residência artística anterior em Itaparica, Gacha teve um sonho com dois continentes se aproximando, com Camarões ao centro. Algum tempo depois, conheceu o Porto de Bimbia, ponto de partida de africanos escravizados rumo às Américas — muitos deles com destino ao Brasil. “Cheguei em frente aos painéis com os destinos das pessoas escravizadas. Estava escrito Brasil, Brasil, Brasil. Eu caí sentada”, relembra emocionada.
Para ela, o Brasil e Camarões compartilham uma memória fragmentada, marcada por uma amnésia histórica imposta pela colonização — tanto entre os que foram levados, quanto os que ficaram. O reencontro com práticas religiosas de matriz africana, como o vudu, também fortaleceu suas raízes, ao encontrar aqui elementos que já não via mais em sua terra natal.
Ressignificar o nome, recontar a história
A artista brasileira Fabiana Ex-Souza, também radicada na França, integra o coletivo Little Africa Village, em Paris, formado por mulheres afrodescendentes. Ela explica por que inseriu o “Ex” em seu sobrenome: uma forma de reivindicar sua história, marcada pela imposição colonial. “Queria criar um espaço entre esse nome que herdei da colonização e um novo caminho de descolonização mental e espiritual”, diz.
Para Fabiana, o projeto Oceano Negro é mais do que uma residência artística: é um local de reencontro sensível com as histórias que atravessam a diáspora. “O Brasil funciona para muitos da diáspora quase como um santuário. Conservamos aqui muitas heranças que se perderam em parte da África por causa das sucessivas colonizações”, afirma.
Temporada França-Brasil: cultura, memória e futuro
A Temporada França-Brasil é fruto de um acordo entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron, firmado em 2023, para fortalecer os laços entre os dois países a partir da cultura e do diálogo. Após a programação brasileira na França no primeiro semestre, é a vez do Brasil receber eventos entre agosto e dezembro.
Com temas como diversidade, democracia, ecologia e relações com a África, a programação passa por 15 cidades, entre elas Salvador, São Paulo, Belém, Recife e Brasília.
Mais do que promover espetáculos e exposições, a temporada tem sido um poderoso palco de escuta, reconexão e reparação histórica — principalmente quando as vozes centrais são mulheres negras que constroem pontes entre os continentes, as ruas e os palcos, o passado e o porvir.
Fonte: Agência Brasil