Monitoramento da Abraji aponta que metade dos ataques de homens a jornalistas mulheres ativou o alerta de gênero, enquanto esse foi o caso de um dos 91 ataques a jornalistas homens
Em 2013, Lisa Gomes, repórter do TV Fama, da Rede TV, se tornou a primeira mulher trans a trabalhar na televisão brasileira. Dez anos depois, enquanto se preparava para entrevistar o cantor sertanejo Bruno, da dupla com Marrone, ela se tornou também alvo de violência transfóbica.
A agressão a Lisa está registrada no Monitoramento de ataques gerais e violência de gênero contra jornalistas 2023, lançado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) na última semana de março.
O levantamento indica que os ataques à imprensa caíram 60% entre 2022 e 2023, mas 9% das agressões contra jornalistas dispararam um alerta de gênero no ano passado, enquanto o mesmo aconteceu com 6% dos ataques praticados em 2022. O alerta é usado quando o sexo, a orientação sexual ou a identidade de gênero da vítima é mencionada ou usada para atacá-la.
No último ano do governo de Jair Bolsonaro, a Abraji registrou 1.038 ataques e agressões à imprensa, dos quais 66 dispararam o alerta de gênero. Já no primeiro ano do governo Lula, a associação identificou 409 ataques, dos quais 36 tinham relação com sexo, identidade de gênero ou orientação sexual.
Foi o caso de Lisa, questionada pelo sertanejo sobre sua genitália. Dias depois, seu cinegrafista identificou nas imagens captadas que o cantor tocou suas próprias partes íntimas enquanto fazia o comentário transfóbico. O episódio teve impacto na vida pessoal e profissional da repórter.
“Não é simplesmente a pergunta que o Bruno me fez. É porque [esse episódio] trouxe alguns gatilhos da época que eu não me aceitava como uma mulher trans. Eu sempre bati de frente com isso, com medo da minha família. E esse medo fazia com que eu pensasse em acabar com a minha vida ou em me mutilar para me ver como uma mulher. Quando o Bruno me faz aquela pergunta, ele me traz todas essas lembranças”, relata Lisa.
Além disso, a jornalista conta que tem dificuldade em passar novamente pelo lugar onde ocorreu o ataque, a casa de shows Villa Country, em São Paulo. Lisa também passou a ter dificuldades para entrevistar outros artistas sertanejos.
“Entrevistar sertanejo para mim é um tormento. Eu chego e começo a trabalhar na minha cabeça que aquilo não vai acontecer de novo. E aí eu entrevisto, mas de um jeito muito diferente de qualquer outro artista. Eu não entrevisto mais nenhum sertanejo como antes, porque eu acho que eles vão me agredir de alguma forma”, reconhece a repórter.
Machismo e transfobia são ataques mais comuns
O monitoramento da Abraji mostra que 205 dos ataques à imprensa em 2023 foram realizados por homens, 77 por mulheres e 127 não têm identificação de gênero do autor, casos em que o ataque foi institucional, grupal ou não é possível saber a identidade de quem comete a violência. Metade dos ataques de homens a jornalistas mulheres ativou o alerta de gênero. Entre os ataques feitos por homens a jornalistas homens, esse foi o caso de um entre 91.
“A violência contra mulheres jornalistas é diferente da violência contra homens cis brancos jornalistas. Contra elas os discursos estigmatizantes são muito fortes. São ofensas verbais inseridas numa estrutura de descredibilização”, aponta Rafaela Sinderski, pesquisadora responsável pelo monitoramento da Abraji.
Quando o alerta de gênero é disparado, o tipo de agressão mais comum são comentários ou atos machistas, misóginos, homofóbicos, bifóbicos ou transfóbicos. Foi o caso de 20 dos 36 ataques do tipo em 2023.
“Identificamos muitos comentários sobre sexualidade e aparência. Nas palavras do agressor, é mais importante que ela esteja velha, que o cabelo dela seja feio, que ela seja feia, do que a informação que ela está passando”, comenta Sinderski.
Plataformas, Estado e mídia têm responsabilidade
Para a pesquisadora, as plataformas precisam fazer um trabalho mais apurado de monitoramento, identificação de agressores e moderação de conteúdo. Sinderski defende que o Estado também deve implementar políticas públicas para responsabilizar agressores e proteger jornalistas de ameaças e agressões nas redes sociais.
“Sem essas medidas, muitos jornalistas vão começar a se autocensurar e isso prejudica muito a qualidade e quantidade de informações de interesse público que são publicadas. Porque se o jornalista está se autocensurando para não passar por violência, inevitavelmente isso vai impactar a informação que o público recebe”, alerta Sinderski.
A pesquisadora da Abraji também lembra que os veículos de comunicação precisam se envolver no suporte a jornalistas que sofrem ataques, como formações sobre proteção de dados e apoio jurídico em casos de assédio judicial, inclusive para freelancers, que ficam mais vulneráveis pela falta de vínculo empregatício.
“Muitas vezes os ataques a profissionais de jornalismo são vistos como problemas individuais, quando são também um problema dos meios de comunicação e para a classe, de maneira geral. Muitos se veem na posição de não ter como lidar com isso do ponto de vista financeiro, mas também emocional ou do ponto de vista informativo, porque não sabem onde buscar orientação”, lembra Sinderski.
Nos dias seguintes ao ataque que recebeu, Lisa Gomes foi trabalhar normalmente, apesar da oferta para que ficasse afastada por um tempo, feita pela emissora onde trabalha. A repórter conta que recebeu mais apoio psicológico que jurídico para um processo que ainda está em curso.
“O episódio aconteceu numa sexta-feira e na segunda eu já estava trabalhando, mesmo sem ter psicológico para isso, mas foi uma uma escolha minha. Depois de 20 dias, eu adoeci. Tinha febre, dor de cabeça, muitos enjoos. E aí sim precisei me afastar por uns dias por conta da minha saúde”, lembra Lisa, que reconhece que a negativa em se preservar após um episódio de violência também tem relação com questões de gênero no mercado de trabalho para jornalistas.
“Eu estava com medo de sair e que colocassem alguém no meu lugar. Porque qualquer brecha que você der, principalmente na televisão, colocam alguém no seu lugar. E quando se tem um problema como esse é pior ainda. Eu precisava mostrar que eu estava forte, mas eu estava destruída por dentro.”
O levantamento de casos de violência de gênero contra jornalistas não é novidade. Em 2017, a Gênero e Número e Abraji realizaram uma pesquisa sobre os desafios enfrentados por mulheres no jornalismo. Entre as profissionais que responderam o questionário, 73% afirmam que já escutaram piadas de natureza sexual no ambiente de trabalho e 92% ouviram comentários machistas.
Em abril de 2022, a Gênero e Número lançou, em parceria com a Repórteres sem Fronteiras, o relatório Impacto da desinformação e da violência política na internet contra jornalistas, comunicadoras e LGBT+. Schirlei Alves, que foi repórter da Gênero e Número entre fevereiro de 2023 e março de 2024, foi uma das profissionais da imprensa entrevistadas sobre suas experiências para a pesquisa.
Schirlei foi condenada em primeira instância a um ano de prisão em regime aberto e multa de R$400 mil por publicar uma reportagem que teve como resultado a Lei Mariana Ferrer, que aumenta a pena para quem coagir vítimas de crimes sexuais durante processo judicial.
Fonte: Gênero e Número