Dora Lúcia de Lima Bertulio, 75, foi uma das poucas estudantes negras da UFPR (Universidade Federal do Paraná) no fim da década de 1960. Ela entrou no curso de direito em 1968, ano do AI-5, o ato institucional que aprofundou a repressão do regime militar no Brasil.
“A questão racial ficou muito perdida naquele contexto da ditadura. Mesmo assim, independentemente de falar ou não falar sobre o tema, você é negra e está ali naquele espaço universitário em que é rejeitada”, diz.
Mais de 30 anos depois, já na cadeira de procuradora-chefe da mesma universidade, Dora iniciou a tarefa de dar respaldo jurídico a um sistema de cotas raciais para entrada de novos estudantes na instituição.
Era apenas a segunda universidade federal do país a adotar as cotas para negros, logo após a UnB (Universidade de Brasília), e a discussão sobre o tema era ferrenha.
“Quando você vai discutir cotas raciais e diz que a nossa negritude vale, você choca a sociedade, e aqui em Curitiba foi uma loucura. A resolução sobre as cotas raciais na UFPR foi aprovada em 2004, mas a briga processual continuou por anos. A primeira batalha foi contra o próprio Ministério Público, que impugnou o edital”, lembra.
Para ela, que viu de perto a chegada de mais estudantes negros à UFPR, a implementação da política foi “a maior revolução que o país já teve” quando se fala de relações raciais e de cidadania.
“A minha percepção empírica é a de que foi a maior revolução cultural que este país já teve, que nem na abolição nós tivemos. Foi quando pela primeira vez os brancos passaram a discutir sobre relações raciais, sobre racismo. Os brancos passaram a fazer parte da discussão. Até então, eu fazia conferências em que o público era praticamente só de negros”, afirma.
Única mulher ao lado de cinco irmãos homens, Dora Lúcia nasceu em Itajaí, em Santa Catarina, e se mudou para Curitiba na esteira do golpe militar de 1964. Seu pai, operário na construção civil e presidente de sindicato ligado à área, foi preso dias após o início da ditadura.
“Ele sempre foi muito ativo na área do trabalhador, era comunista, filiado ao partido. Quando meu pai foi preso, quebrou toda a estrutura familiar. A mãe era do lar, trabalhadora doméstica. De repente, a gente não sabia onde ele estava. Foi um desespero”, conta.
Em um primeiro momento, a prisão durou três meses. Quando ele voltou para casa, a família resolveu deixar Itajaí. “Não tinha condições de ficar por conta da rejeição da cidade. Era um negro comunista, imagina isso.”
Quando Dora chegou a Curitiba, ela cursava o ensino médio e já sabia que queria fazer faculdade de direito.
Na época, a família se dividiu. Seu pai passou a ser considerado fugitivo pelo regime militar e precisou sair de Curitiba. “Os brancos, aqueles com mais condição financeira, foram para o Chile, depois foram para a França. O exílio do papai foi no mato. Ele foi para a região de Guaíra trabalhar como peão de obra”, diz.
Quando entrou na UFPR, Dora se aproximou do movimento estudantil. O grupo de estudantes críticos à ditadura parecia “menos arredio” na questão racial, segundo ela. “Embora não se discutisse [a questão racial], a própria estrutura de lutar contra uma opressão fazia com que as pessoas fossem mais acessíveis”, afirma.
Mas Dora mantém na memória episódios de racismo dentro de sala de aula. “Alguém falou na aula sobre a questão do negro nos EUA. E daí o professor disse: ‘Eles lá vão ter que brigar muito, mas aqui a gente não precisa porque os negros sabem o seu lugar’. Eu estava na sala e todo mundo achou aquilo natural, normal, ninguém se chocou”, diz.
Mulheres no Direito
Folha apresenta perfis de figuras relevantes no mundo jurídico, como magistradas, procuradoras e advogadas.
Dora se casou depois da formatura, teve três filhos e iniciou a trajetória profissional em Cuiabá, na assessoria jurídica da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso).
Foi durante esse período que surgiu a oportunidade de um mestrado na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em Florianópolis. Em 1989, sua dissertação “Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo” foi um marco.
Com o país já em processo de redemocratização, Dora passou a ser chamada para falar em universidades e conferências sobre relações raciais, ao longo da década de 1990.
No período, também prestou consultorias para a Fundação Ford, ajudando na elaboração de um curso de formação de advogados negros para a questão racial. No mesmo curso, lembra Dora, a fundação levou professores dos EUA para falar sobre ações afirmativas, como cotas raciais.
Dora entrou na procuradoria da UFPR em 2000, e a discussão sobre cotas raciais começava a avançar no Brasil.
Para ela, as cotas raciais ainda não estão consolidadas, após quase 20 anos da implementação da política em universidades brasileiras.
“A discussão permanece inclusive com os mesmos argumentos [de 20 anos atrás]. O único argumento que caiu, diante do Supremo Tribunal Federal, foi o da inconstitucionalidade. Mas ele caiu formalmente. Na cabeça, no inconsciente coletivo das pessoas, ainda há dúvida”, diz.
Além disso, mesmo com a entrada de mais negros no ensino superior, ela afirma que a ocupação de espaços de poder, como no Legislativo e no Judiciário, por exemplo, segue árdua.
Em 2006, Dora chegou a ser candidata a conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Paraná, órgão auxiliar do Poder Legislativo, e que historicamente tem suas principais cadeiras ocupadas por homens brancos.
Não foi eleita conselheira, mas se surpreendeu com os seis votos obtidos na Assembleia Legislativa, onde há 54 cadeiras de deputados estaduais (na eleição do ano passado, 41 foram ocupadas por homens brancos).
“Aceitei ser candidata para fazer essa discussão sobre gênero e raça. Acho que a gente pode usar nosso corpo e nossa mente para estimular mudanças”, afirma.
Dora se aposentou como procuradora da UFPR em agosto, pouco antes de completar 75 anos, mas segue como advogada e tem outros planos. Cogita se colocar como voluntária na Vara de Execuções Penais.
“A quantidade de pessoas presas sem nada, ou sem processo, ou com pena já vencida, sempre me incomodou muito. Até porque a maioria da população nesta condição é negra também”, afirma.
Raio-X | Dora Lúcia de Lima Bertulio, 75
Nascida em Itajaí (SC), é advogada e procuradora aposentada da UFPR (Universidade Federal do Paraná). Formada em direito pela UFPR, concluiu mestrado na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Iniciou sua trajetória profissional na assessoria jurídica na UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) e, entre os cargos que ocupou, está o de procuradora-chefe da UFPR, onde ficou conhecida pela sua atuação na implementação de cotas raciais a estudantes, em 2004. Também foi procuradora da Fundação Palmares, entre 2009 e 2016. Voltou para a Procuradoria da UFPR em 2017, onde seguiu até a aposentadoria, em agosto de 2023