Por Mariana Bastos*
“Éinacreditável que precisemos de uma lei para dizer que uma mulher não pode ser algemada na maca do hospital no momento do parto”, diz Maíra Fernandes, uma das coordenadoras da pesquisa “Mulheres e crianças encarceradas: um estudo jurídico-social sobre a experiência da maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro”. A pesquisadora, que foi presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, se refere à lei 13.434, sancionada em abril deste ano.
Estar algemada durante o processo de parto é apenas uma das múltiplas violações de direitos perpetradas por agentes do Estado contra as mulheres encarceradas no Brasil. A pesquisa “Nascer na prisão”, publicada pela Fiocruz em 2016, entrevistou 241 mulheres que viveram gestação e parto enquanto estavam presas em unidades de 24 Estados brasileiros e do Distrito Federal. Destas, 36% disseram que foram algemadas em algum momento da internação para o parto, sendo que 8% estavam com algemas no momento do nascimento de seu bebê.
O estudo ainda revelou que 55% das gestantes tiveram menos consultas de pré-natal do que o recomendado e 15% relataram ter sofrido algum tipo de violência durante o período de internação. Somente 3% delas tiveram um acompanhante durante o parto, o que contraria um direito garantido pela lei 11.108, de 2005. Para 73% delas, o principal motivo para a interdição da presença de um acompanhante foi a proibição do sistema prisional.
“Quando a gente vai ganhar [um bebê], é um momento único nosso. Seria bom a gente poder compartilhar com alguém importante da nossa família. Vai ser o primeiro neto da minha mãe. Ela não vai poder estar do meu lado, segurando a minha mão, dando uma força. Que diferença faz ter a minha mãe ali? Eu vou fugir?”, lamentou uma das gestantes entrevistadas no documentário realizado a partir do estudo da Fiocruz e lançado em agosto deste ano.
Aplicação da lei diminui pela metade número de detidas no Rio de Janeiro
A maternidade é particularmente sensível no debate sobre as mulheres privadas de liberdade, uma vez que 83% delas têm ao menos um filho, segundo a pesquisa “Nascer na prisão”. Não à toa, os esforços de defensores de direitos das mulheres e de profissionais que atuam na Justiça brasileira têm se focado neste aspecto da vivência das que se encontram atrás das grades.
Em 8 de março de 2016, o Marco Legal da Primeira Infância alterou o artigo 318 do Código de Processo Penal e passou a estabelecer o direito à prisão domiciliar a toda mulher presa provisoriamente que seja gestante ou que tenha filhos de até 12 anos de idade. O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), de junho de 2014, registrou um aumento de 567% do número de presas entre 2000 e aquele ano – taxa bem superior à masculina, de 220% –, e apontou que um terço delas está privada de liberdade sem condenação.
Dias depois da promulgação do Marco Legal da Primeira Infância, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro estabeleceu a resolução 819, uma política de atenção a mulheres grávidas, lactantes e mães de crianças de até seis anos ou com deficiência e que estejam privadas de sua liberdade. A resolução e a nova lei federal foram fundamentais para que o órgão reduzisse pela metade o número de detidas no Estado. Em novembro de 2015, eram 4.139; no fim de setembro, eram 2.096.
Os critérios dessa lei também basearam a requisição de um habeas corpus coletivo em prol de todas as mulheres gestantes ou mães de menores de 12 anos que se encontram presas provisoriamente no país, elaborado pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu) e apresentado ao STF (Supremo Tribunal Federal) em maio. Segundo o CADHu, a determinação da prisão preventiva a estas mulheres “constitui ato ilegal praticado de forma reiterada pelo Poder Judiciário brasileiro”.
De acordo com cálculos feitos pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), a adoção dessa medida teria o potencial de colocar em liberdade provisória 1.746 mulheres somente no Estado de São Paulo. Esse número seria suficiente para esvaziar totalmente o Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha e a Penitenciária Feminina da Capital, que têm capacidade para 1.008 e 604 internas, respectivamente, segundo o Infopen.
No entanto, nem todas as mulheres têm a chance de se beneficiar da nova lei, pelo simples fato de não conseguir comprovar a maternidade por falta de documentos como certidão de nascimento e até registro de identidade. Foi este o caso de 69 mulheres entre as 179 atendidas pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro entre novembro de 2015 e fevereiro de 2017.
“Há pessoas que são presas sem nunca ter recebido um registro de nascimento. Não existem para o mundo, mas quando chegam ao sistema penal, ganham um RG. Isso ninguém fala sobre essa população invisível”, afirma a assistente social Mariângela Pavão, que há 20 anos trabalha com egressos do sistema penal no Rio.
Há muitos casos também de mulheres detidas que sequer sabem que estão grávidas. No documento Diretrizes para a Convivência Mãe/Filho no Sistema Prisional, elaborado pelo Departamento Penitenciário Nacional em 2016, estabelece-se enfim o direito de a mulher solicitar um teste de gravidez antes da audiência de custódia.
Presídio cor de rosa
Segundo o documento “Mulheres, meninas e privação de liberdade no Rio de Janeiro”, produzido em março de 2016 pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, não existe no Brasil um presídio construído com arquitetura apropriada para receber mulheres, muitos dos quais são instalações adaptadas de prisões masculinas ou de prédios destinados originalmente para outros fins, como conventos.
“Quando foram fazer presídios femininos, muitos, que antes eram masculinos, foram pintados de cor de rosa e acharam que estava tudo bem”, conta à Gênero e Número a jornalista Nana Queiroz, que visitou presídios nas cinco regiões do país para escrever o livro ‘Presos que menstruam’. “Nos banheiros, por exemplo, o biombo dos homens é só até a cintura, mas as mulheres precisam cobrir o seio também, porque tem muito carcereiro homem ali.”
Segundo o Infopen, apenas 34% das prisões para mulheres no Brasil dispõem de cela ou dormitório adequado para gestantes, 32% possuem berçário e 5% contam com creches. Por conta disso, muitas mulheres grávidas e mães de crianças têm de ser transferidas das prisões em que se encontram para uma das 41 unidades no país que contam com uma estrutura materno-infantil.
“Há uma política de concentrar as mães e as grávidas em uma ou duas unidades prisionais em cada Estado que tem uma ala para abrigar mães e crianças. Se a mulher é do interior, fica longe da família, porque em geral essas unidades estão nas capitais”, afirma Alexandra Sanchez, uma das coordenadoras do estudo da Fiocruz.
“A maioria das prisões permite que as mães fiquem com as crianças no máximo até um ano de idade. Depois, elas têm de se separar”, comenta Sanchez. Geralmente as crianças são entregues aos familiares ou, na ausência desses, vão para abrigos, e a mãe retorna à prisão de origem. “Muitas delas não conseguem nunca mais ter contato com os filhos, mesmo depois que saem da prisão, porque as condições impostas às egressas para isso são muito mais rígidas”, diz a pesquisadora.
Condições precárias persistem
Apesar de a pesquisa da Fiocruz ter sido realizada entre 2012 e 2014, as condições precárias que as gestantes privadas de liberdade enfrentam ainda permanecem. Um exemplo é o presídio Talavera Bruce, situado no complexo penitenciário de Bangu, no Rio. No documento publicado pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura em 2016, constatou-se superlotação na unidade, que não tem infraestrutura adequada para receber gestantes. Havia 76 presas a mais do que o número de vagas.
Segundo Victoria Fernandes, do coletivo Mulheres da FND (Faculdade Nacional de Direito da UFRJ), as internas desta unidade “ficam basicamente presas o dia inteiro em uma galeria com mais de 20 mulheres grávidas, sem nenhuma assistência, sem água filtrada, sem alimentação adequada”, relatou durante audiência pública realizada na Câmara de Vereadores do Rio no fim de setembro.
“Entramos na galeria para conversar com algumas. Duas delas eram hipertensas e diabéticas. Já eram 14h e elas ainda não tinham recebido medicação. Uma delas estava simplesmente estatelada no chão, pedindo pelo amor de Deus uma ajuda para a defensora. Mais tarde, descobri que no Talavera Bruce existem apenas dois médicos para atender 427 presos”, disse Fernandes.
O direito a fazer uma ligação após ser detida também é muitas vezes negado. Patrícia Magno, defensora pública do RJ, conta que acompanhou o caso de uma mulher que chegou a tentar o suicídio por conta disso. “Estive no Hospital Penal Psiquiátrico Roberto Medeiros [no Rio] atendendo uma dessas mulheres de emergência psiquiátrica, que estava presa havia três semanas e tentou o suicídio na Penitenciária Nelson Hungria porque não a deixaram saber de seus filhos. Ela não fez sequer uma pergunta sobre o processo criminal. Ela só queria saber como estavam os quatro filhos porque, quando foi presa em flagrante, não lhe deram o direito de fazer uma ligação.”
Metade delas não completou ensino fundamental
A ineficiência do sistema prisional em promover uma reintegração adequada de ex-presas à comunidade é outra falha identificada pelas especialistas. “Elas entram no sistema prisional com baixíssima escolaridade. Isso não muda com o ingresso no sistema, independentemente do tempo que elas forem permanecer lá”, comenta Maíra Fernandes.
Segundo a Lei de Execução Penal, é dever do Estado fornecer assistência educacional à pessoa privada de liberdade, com o objetivo de prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. A lei prevê que essa assistência compreende a instrução escolar e a formação profissional, devendo o ensino fundamental ser obrigatório. De acordo com o Infopen, até 2014 mais de 70% das mulheres privadas de liberdade possuiam no máximo o ensino fundamental completo, e somente 25% das unidades prisionais no país ofereciam atividades escolares.
Outro problema grave é a falta de albergues para abrigar as mulheres que saem das prisões, que em muitos casos não têm para onde ir após cumprir pena.
“A nova Lei de Execução Penal, que está no Congresso Nacional, prevê a responsabilização dos municípios [na albergagem]. Das minhas 500 egressas, quase metade é do município do Rio. Elas não têm albergue, assim como nenhum egresso que sai do sistema penal”, relata Mariângela Pavão. “As pessoas chegam à minha sala de mala e cuia e eu digo o quê? Fico o dia todo buscando albergagem para elas. E muitas vezes eu não consigo”, lamenta a assistente social.
Mariana Bastos é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
Fonte: Gênero e Número