A médica Giulia Parise Balbão, de 31 anos, está na linha de frente do combate ao coronavírus desde o começo da pandemia. A crise a fez vivenciar experiências extremas dentro do quadro de desigualdade no acesso à Saúde no Brasil. No início da pandemia, Giulia atuava em um dos maiores hospitais particulares do país ―o Sírio Libanês, em São Paulo―, onde via muitos recursos e a intensa busca de pesquisadores para tratar a doença na maior metrópole do país. Há pouco mais de um mês, ela mergulhou em uma realidade completamente diferente. Foi contratada pelo povo Kuikuro, com recursos conseguidos por meio de campanhas na internet, para atuar na aldeia indígena Ipatse, no Xingu.
Ali, ela é a primeira médica fixa do território, para onde todos os meses o Governo Federal envia um profissional que faz os atendimentos durante alguns dias e depois segue para outras aldeias. No depoimento que o EL PAÍS reproduz a seguir, Giulia conta sua experiência no enfrentamento da pandemia em uma aldeia indígena onde a Saúde sempre foi fragilizada, mas a organização coletiva revela sua potência na mitigação da crise. “A aldeia Ipatse pode ensinar ao Brasil sobre como a organização coletiva é potente pra enfrentar o coronavírus”, ela diz.
“Eu era médica no Sírio Libanês, mas sempre tive interesse pela Saúde Indígena. Durante a pandemia, lia os relatos do que significava para os povos ancestrais perderem seus anciãos e ficava muito angustiada com isso, com a história e a cultura que se perdiam com essas vidas humanas. Entrei em um grupo sobre Saúde Indígena e comecei a pensar que, se houvesse uma possibilidade, eu iria trabalhar com eles. Em julho, o pessoal do Projeto Xingu da Unifesp entrou em contato comigo para ir com urgência, porque os sintomas gripais estavam aparecendo com mais força na aldeia Ipatse, no Mato Grosso. Pedi demissão e fui para lá.
Tem toda uma logística para chegar até a aldeia. Fui para a cidade de Canarana e depois viajei de carro por seis horas até chegar na comunidade. Fiquei em uma oca que eles construíram para ser um local de isolamento. E trabalho todos os dias em uma unidade básica de saúde construída por eles, que foi uma luta pessoal do cacique Afukaka. Eles são extremamente unidos e organizados, conseguem as coisas que acreditam.
Quando eu cheguei, tinha muita gente esperando. Eu me senti o centro das atenções. Vi que tinha muita expectativa pelo meu trabalho, mas que eles já estavam também muito organizados. Já tinha muita gente trabalhando incansavelmente pra combater o coronavírus, com medidas de prevenção. Nunca houve tantas pessoas esperando por mim, e eu senti uma responsabilidade gigantesca. No dia que cheguei, já me levaram para ver o cacique porque ele não estava se sentindo bem. E aquilo foi muito mobilizador pra mim.
Eu nunca tinha entrado em uma casa xinguana. Elas são muito grandes, altas e escuras dentro, com uma cozinha no centro. Às vezes, moram cerca de 15 pessoas em casa dessas. Eu entrei em uma casa dessas para atender o cacique, que eu conhecia dos livros do fotógrafo Sebastião Salgado. Ele me disse: “Oi, estava te esperando”. Era fim de tarde, e ele estava deitado. Eu apliquei um soro intravenoso, mas pensava: “É assim que um líder como ele descansa e diz que estava me esperando?”. Fiquei muito emocionada.
Antes da minha chegada, a aldeia já tinha definido que seu objetivo era não perder nenhuma vida pelo coronavírus. Diante de todas as dificuldades políticas que os povos indígenas têm enfrentado, eles sentiram bem no começo da pandemia que a comunidade precisava se unir pra garantir esse cuidado. Eu cheguei no meio de uma demanda coletiva, quando tudo já estava acontecendo. Eles já tinham casa de isolamento e uma unidade de saúde pronta da comunidade. Já rastreavam os casos suspeitos e faziam a quarentena. E ai eu entrei para uma equipe que já funcionava.
Duas anciãs de quase 100 anos adoeceram, mas ninguém precisou ser removido. O tempo todo usamos a medicina tradicional baseado em evidências científicas, nem precisei defender isso. Tratamos as doenças do espírito com as raízes e a pajelança. E as doenças do corpo com a medicina alopática (não indígena), as raízes e a pajelança. A medicina alopática não cura as doenças do espírito. Ninguém usou cloroquina na aldeia porque até mesmo os remédios naturais usados têm uma história ancestral e amplamente conhecida pelos raizeiros.
Em São Paulo, o hospital que eu trabalhava tinha muitos médicos altamente capacitados, uma disponibilidade de exames de todos os tipos, pesquisas sendo realizadas. Tinha toda uma oferta de recursos. Eu vejo o quão é desigual o tratamento de saúde no Brasil e isso me dá uma angústia. Eu estava num dos maiores hospitais do país enquanto o Xingu poderia perder seus anciãos. Minha formação é pensada para atuar num contexto comunitário, eu sou médica da família, então vir trabalhar com eles foi também uma reconexão comigo mesmo.
Todos os dias, eu visito algumas casas e atendo da unidade de saúde. Também pratico telemedicina pelo rádio, assistindo aldeias vizinhas onde moram outras pessoas da etnia Kuikuro. Parte do nosso trabalho é reestruturar os cômodos e ambientes da unidade de saúde pra que ela consiga atender as mulheres, com exames mais reservadamente. Tem pelo menos cinco aldeias que a gente contacta todos os dias pela manhã pra saber como estão as pessoas, se tem alguém com sintomas gripais. Quem responde o rádio é um agente indigena de saúde, que diz como estão pacientes. Depois, a gente sai pra visitar as casas. Aqui tem uma cultura de não sair de casa se não tiver se sentindo bem mesmo. Eles se sentem mais protegidos em casa.
Na Ipatse, o Kauti Kuikuro é a principal pessoa responsável pelo cuidado. Ele é agente de saúde e faz todas as avaliações. Quando não tem o médico não indígena no território, ele aplica a medicina tradicional. Foi ele que começou o enfrentamento ao coronavírus antes da gente chegar lá. É ele quem faz as traduções do karib principalmente quando atendo mulheres e idosos, que não falam português. Eu faço meu papel de médica, mas o cuidado aqui já era feito pelo Kauti. Todo dia aprendo mais com ele do que ensino qualquer coisa. Ele e os pajés me ensinaram sobre o adoecimento espiritual e a necessidade de um tratamento multidisciplinar para curá-lo.
Desde o meu primeiro dia, um dos pajés conversou comigo e falou: “você está aqui, bem vinda. Estávamos te esperando muito. E eu queria te dizer que a gente é uma equipe. Vamos trabalhar juntos”. Aqui todo mundo está junto lutando pelo mesmo propósito: que nenhuma vida se perca pelo coronavírus. O nosso desafio é conseguir isso levando em consideração a assimetria que há no acesso à saúde no Brasil, e no tipo de cuidado oferecido, tantas vezes hospitalocêntrico, pontual, e não voltado à promoção de saúde e prevenção de doenças.
Sou sempre muito requisitada pela comunidade, assim como o enfermeiro, não só para falar sobre sintomas gripais ou dores e cansaços após o quadro de covid. Muitos pacientes nos procuram querendo contar sobre seus problemas crônicos de saúde, gestantes querendo conversar sobre os seus pré-natais. Eu vejo que é preciso construir um vínculo terapêutico, a exemplo do que construí com meus pacientes em outros cenários como no Sírio Libanês, ou em Florianópolis. Eu vejo que o tempo todo existe uma curiosidade, um interesse em saber da minha formação. Sempre essa troca curiosa e interessada.
Aqui eu tenho aprendido sobre preparação, organização e vida comunitária. Tem um líder humano e forte que reuniu as pessoas, o cacique Afukaká Kuikuro. Ele reuniu amigos e amigas pesquisadores, arqueólogos, antropólogos, e todos compõem um coletivo que se reúne há meses e planeja intensamente junto com a Associação Indígena Kuikuro o enfrentamento ao covid-19 nas aldeias da etnia. É um trabalho pensado coletivamente. A aldeia Ipatse pode ensinar ao Brasil sobre como a organização coletiva é potente pra enfrentar o coronavírus. Há uma sabedoria imensa e admirável que vem da ancestralidade dos povos originários. É preciso entender que ali existe uma inteligência enorme, resiliência, e uma organização potente, imprescindível em tempos tão ameaçadores à floresta e seus povos”.
Fonte: El País Brasil