*Publicado originalmente na Agência Pública
** Este texto integra uma série especial sobre violência contra a mulher, da Agência Pública
Em silêncio, espero a chegada do grupo junto dos psicólogos Tales Furtado Mistura e José Luiz Querido. Na salinha de cor creme, quase só cabem a mesa, as cadeiras, um quadro branco e uma estante. “Acho que hoje não vai ter muita gente não”, eles comentam enquanto a chuva caía naquela segunda-feira estranhamente fria para o começo de ano em São Paulo.
Esse seria o primeiro de três encontros de grupos reflexivos para homens enquadrados na Lei Maria da Penha que eu pude presenciar. Eles se reúnem toda semana na sede do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, um casarão vermelho situado numa rua pacata próxima ao largo da Batata, zona oeste de São Paulo. Uma equipe de psicólogos do coletivo oferece esse serviço de forma voluntária, e os encontros são gratuitos.
A casa do coletivo é o único espaço que acolhe grupos desse tipo na capital paulista. O outro espaço que sediava encontros como esse era a Academia de Polícia Civil do Estado de São Paulo (Acadepol), mas, segundo a Pública apurou, o curso está suspenso. Os relatos de quem foi a esse grupo dão conta de que a coisa andava mais à base da ameaça do que como uma reflexão conjunta legítima, como acontece na casa.
Os que participam dos grupos são homens enquadrados legalmente como agressores (não necessariamente culpados), para quem foi determinado, conforme o artigo 45 da Lei Maria da Penha, o “comparecimento obrigatório a programas de recuperação e reeducação” mesmo antes do fim do processo. Frequentar esse tipo de grupo não isenta os supostos agressores de responder a seus processos, mas a assiduidade é considerada pelos juízes na hora de bater o martelo e determinar as penas. A presença de mulheres é proibida nas sessões, e eles devem ir a no mínimo 16 encontros.
A lei prevê também, para a efetiva realização de programas como esse, a criação de “centros de educação e de reabilitação para os agressores” por todos os entes federativos, conforme o artigo 35. A realidade, porém, é que, em todo o país, existem pouquíssimos espaços assim.
Aos poucos, as cadeiras vão sendo preenchidas por homens bem diferentes uns dos outros. Nas seis horas que passei na salinha durante os três encontros, quebrei todos os meus preconceitos. Esperava encontrar monstros agressores, sádicos contumazes, malfeitores violentos próximos ao “estereótipo Datena”. Encontrei homens constrangedoramente comuns, uma amostra masculina fidedigna de toda a pirâmide social brasileira como raramente vi. O “homem brasileiro” estava ali em todas as suas nuances.
Estiveram comigo homens altos, baixos, magros, gordos, brancos, pardos, negros, ricos, pobres, barbudos e barbeados de 20 a 60 anos. De profissões igualmente diversas como empresários, músicos, representantes comerciais, zeladores, autônomos, vendedores, psicólogos, engenheiros. Também havia os desempregados e aposentados.
Quase todos vão chegando atrasados e dando as mesmas justificativas: a chuva, o trânsito caótico de São Paulo, o trabalho que os segurou mais do que gostariam. Alguns não falam nada, como um rapaz com nariz de lutador que chegou acompanhado do pai.
Ao atingir uns 90% do quórum esperado para o primeiro dia, os psicólogos pedem que eu me apresente. “Boa tarde, o meu nome é Ciro Barros, sou repórter da Agência Pública. Estamos fazendo uma matéria sobre violência contra a mulher e queríamos ver de perto como funcionam esses grupos reflexivos previstos na lei.” Desde a primeira frase, notei todos os olhares na minha direção, um estranho naquele ninho de reflexão. A única condição era não identificar nenhum interlocutor.
Os psicólogos perguntam se ninguém se opõe à minha presença e ninguém responde. Um senhor de fala pausada e cabelos brancos já bem “desmatados” quebra o silêncio. “Eu só acho que o seu enfoque não tá muito correto. Você falou em violência contra a mulher, mas é preciso averiguar quando essa violência é contra o homem também. Essa lei existe para proteger todas as mulheres e, a partir do momento em que elas denunciam, você vira réu. É uma lei esdrúxula, mal formulada, feita na base de um toma lá da cá, quem sabe na base do Mensalão”, sentencia.
A estranha contestação desata um chororô sem fim contra a Lei Maria da Penha. Eles reclamam de que a lei protege demais as mulheres, nivela os homens por baixo, permite injustiças. Um outro senhor grisalho bate o tempo todo na mesa e pede pelo menos umas três vezes para eu anotar com precisão o que ele diz. “Escreve aí. Só com essas leis, não vai resolver o problema. Pode escrever. Vai morrer cada vez mais mulher. Eu moro no centro, vejo todo dia o que acontece naquelas pensões de lá. Elas vão continuar apanhando.”
Os protestos soam como negação, resistência desses homens em admitir seus erros diante do grupo (e da própria consciência). Faz parte dessa “masculinidade tóxica” assumir a postura do machão competitivo que nunca erra. Tales Furtado Mistura, um dos psicólogos que orienta semanalmente os grupos, descreve em sua tese de mestrado a respeito desse tema os estágios emocionais mais comuns entre os homens que frequentam os grupos reflexivos: vergonha, punição, vitimização, revolta, perplexidade “e, mesmo, estranhamento em relação aos outros participantes do grupo”, ele escreve.
O arco descrito por Tales se encaixa nas reações que eu observei no primeiro dia. Por trás das falas irônicas e exaltadas transparece uma vergonha tremenda de estar ali, um deslocamento da culpa para a vitimização – é a legislação que é cruel, injusta. A revolta e a perplexidade aparecem em falas como: “Eu nem sabia que isso dava cana”; “O cara rouba bilhões da Petrobras e não vai preso e eu tô aqui”.
A casca vai se quebrando e, quando reparo, eles já estão à vontade para contar suas versões das histórias de agressão que os levaram ali. O músico alternativo diz que começou a brigar “por questões particulares”. “Aí ela veio pra cima de mim e eu agarrei ela. Só que eu peguei firme. Sou baixista, né?”, diz. Outro representante da “ala de injustiçados”, um rapaz de cabelo descolorido, alega que estava na casa dos pais com o filho quando a ex-esposa entrou e começou a agredi-lo, tentando tomar o filho dele. Mais de um afirma que a agressão foi mútua. O pai do nariz de lutador conta que ele havia terminado com a namorada e a ameaçado de agressão nas redes sociais. “Mas só isso?”, ouço alguns protestos.
Para muitos, a própria noção do que é violência é bem primária; só existe se o homem agredir fisicamente uma moça e a deixar sangrando no chão desfalecida. Agressões verbais, ameaças, não são violência. Muitos valorizam esse espaço, onde podem falar de dor, culpa, perplexidade, sentimentos que os homens não estão acostumados a compartilhar. Outros não estão dispostos a refletir sobre nada. Veem o grupo de forma instrumental, quase como uma “consultoria jurídica”: querem saber dos que passaram por audiência como se portar no tribunal, como negar as acusações contra eles.
Saio desse primeiro encontro com a impressão de que homens capazes de leituras mais refinadas em outros aspectos da vida sucumbem como selvagens diante dos conflitos com suas mulheres. O machismo emburrece, eles não veem saídas além da violência. Quando a mulher desafia o lugar subalterno socialmente determinado, a força física é o trunfo, a garantia de segurança, a possibilidade de voltar à ordem simples, hierárquica e violenta da opressão de gênero.
Comento esse pensamento com o coordenador dos grupos reflexivos, o psicólogo Leandro Feitosa Andrade. Ele parece concordar. “A maior parte dos homens envolvidos em episódios de violência tenta fazer a manutenção de uma lógica patriarcal e machista para os seus relacionamentos. Essa lógica, por princípio, é hierarquizada: o homem está no topo e a mulher é subalterna. Quando a mulher reivindica igualdade, ou simplesmente se ela não quer se submeter ao que o homem coloca como modelo, acontece o choque”, explica.
“A socialização primária do homem é machista. Ela é competitiva, hierarquizada”, continua o psicólogo. “Quando a gente cresce, até coloca em xeque essa perspectiva; só que isso, para o homem, é um exercício. Isso não está na formação básica. Enquanto a gente está numa dimensão racional, tudo bem. Só que quando a gente chega no limite dessa dimensão racional, em situações de confronto, por exemplo, a gente regride para essa primeira socialização machista”, conclui.
Encontrei o mesmo grupo na minha segunda visita ao casarão de Pinheiros. Dessa vez, a recepção é bem mais calorosa: eles me tratam pelo primeiro nome e sorriem antes de me cumprimentar. Um empresário de camisa polo e gel no cabelo começa o papo dizendo o quanto foi importante para esses homens tomar conhecimento da lei. Ele enaltece o tempo todo a consciência que o grupo lhe deu a respeito das punições a que pode estar sujeito caso volte a agredir uma mulher. As reflexões dele parecem mais restritas a aspectos práticos. “Você acha que eu não senti vontade de meter a mão na cara de uma mulher depois do que aconteceu?”, ele pergunta ao grupo. “Mas eu não vou fazer isso porque eu sei que eu vou me foder, cara. Eu posso acabar caindo numa cadeia, como aconteceu com alguns aqui.”
É a deixa para o depoimento de dois senhores presos em flagrante por agressões às companheiras. Pergunto aos dois como foi a experiência da cadeia. Um senhor negro falante e engraçado, já nos seus 50 anos, toma a iniciativa. “Eu fiquei no meio de um monte de ladrão num corró [cela] do 2º DP. Eu entrei lá meio dia com seis homens. Quando foi cinco horas da tarde, nós estávamos em um X [cela] com 28 pessoas, num lugar menor que essa sala aqui. Só o banheiro e o X. E o carcereiro empurrando ladrão lá dentro o tempo todo, desafiando, ameaçando arriar a madeira em mim”, conta.
Para ele, foi ameaçador dividir a cela com ladrões de banco, enquanto ele “só” agrediu a mulher. “A cadeia não serviu pra nada, só pra dar o medo de voltar pra lá. Aqui você aprende como lidar com a situação, lá você só se revolta com a situação. Lá não dá tempo de refletir, você quer sobreviver. A partir do momento que eu entrei naquele dia lá, já veio na minha mente: ‘Se eu sair daqui pra um CDP, eu não vou ser mais um trabalhador. Eu vou ser um marginal’. E a primeira coisa que eu ia matar era a minha mulher. E depois ia matar o filho dela, porque, se eu matasse ela, o filho ia se envolver. Eu só mudei de ideia porque eu aprendi aqui a me reeducar”, diz.
O outro tiozinho de boné, 57 anos, é mais sisudo, fica de braços cruzados o tempo todo. Ele conta que ficou numa cela no CDP de Pinheiros com 48 pessoas, no “meio de tudo: ladrão de banco, assassino… Todo mundo esperando ser julgado. O que que isso corrige? Nada.” O psicólogo Tales, coordenador do grupo, entra na conversa. Ele diz que, quando preparava seu mestrado na USP sobre o grupo, pensou em usar como recorte homens que haviam sido presos. “Os homens que foram presos são muito mais revoltados do que os que não foram presos. Eu coordeno o grupo já faz cinco anos. Os homens que são presos entram na cadeia com raiva das mulheres que agrediram e saem de lá com raiva de todas as mulheres do mundo, de todos os policiais do mundo, de todo o sistema prisional. Com essa revolta, a chance deles agredirem a mesma mulher ou outras eleva-se ao extremo. O cara fala: ‘Meu, passei seis meses só pensando em como eu vou matar aquela filha da puta’”, ele relata. Ou seja, a eficácia dos grupos parece maior do que a da prisão.
Era a véspera do Dia Internacional da Mulher quando compareci ao meu terceiro encontro com o grupo. O psicólogo Leandro apresenta um novo integrante, Milton*, e pede que ele conte sua história. Ele tem 39 anos, é vigilante e conta ter passado três meses no CDP de Pinheiros após ter ameaçado a mulher de morte com uma faca. “Em outubro passado, nós tivemos uma última briga e eu ameacei ela com uma faca, fiz um risco no pescoço dela. Fui preso em flagrante e saí agora em janeiro”, ele relata. “Eu tive um choque muito grande, foi a primeira vez que eu fui preso. Quando eu bati lá dentro, tive de conviver com tudo que eu detestava. Paguei minha língua, tive de conviver com homossexuais, pessoas de cor, traficantes. E na casa de detenção, quem é Maria da Penha é como se fosse nada, o assaltante, o assassino é como se fosse patente, uma pessoa bem vista. Maria da Penha, ladrãozinho de farol, quem tá lá por pensão alimentícia, é visto como nada”, relata.
Milton diz que saiu do inferno do cárcere decidido a buscar apoio psicológico. E foi justamente a esposa agredida a única pessoa que o apoiou, conta. Como ele não tinha para onde ir, a esposa chegou a passar por cima de uma medida protetiva, um dispositivo da Lei Maria da Penha que impede que o agressor se aproxime da vítima. “Eu tinha medida protetiva até contra o meu filho, mas mesmo assim a minha esposa me deu abrigo, me colocou para dormir dentro de casa”, diz. Foi ao psiquiatra dela, que lhe receitou remédios, mas ele queria tratamento psicológico. Ela então sugeriu que ele frequentasse os grupos reflexivos na sede do coletivo, conta. Eu vi quando ele chorou um pouco.
Após a fala de Milton, foi a vez de outro homem, que se apresentou como zelador de um prédio no centro de São Paulo há seis anos. É a primeira vez que ele conta a sua história, diz. “A gente bebia muito junto, eu e a minha esposa. Só que um dia ela parou de beber, pediu pra eu parar e eu continuei naquela rotina. Depois que ela parou, toda vez que eu chegava em casa bêbado a gente brigava, era várias treta sempre. Aí um dia eu cheguei em casa, saí pra ir cortar o cabelo, voltei louco, né, meu. Ela começou a falar um monte e eu comecei a quebrar tudo dentro de casa.” Ele conta que, quando a esposa começou a correr para sair de casa, jogou uma televisão nela. Ainda assim ela conseguiu sair, trancar a porta e pedir ajuda da uma viatura de polícia enquanto ele arrombava a porta com um martelo e uma chave de fenda. “No que eu desci e saí pra rua, ela tava chorando com a viatura. E eu com o martelo e a chave de fenda na mão. O policial me viu e me perguntou: ‘Que que você vai fazer?’. E eu respondi: ‘Vou matar ela’. Eu loucão, né? Aí ele subiu na minha casa, viu o que tinha acontecido, me levou pro DP e eu fui preso em flagrante”, resume.
Ele ficou um dia no 2º DP do Bom Retiro e no dia seguinte, diz, “cantou o bonde” e o nome dele estava escalado para o CDP de Pinheiros. “Fiquei dez dias lá, os piores da minha vida. Nunca tinha passado por nada parecido. Perdi 10 quilos lá dentro porque eu não conseguia comer a marmita azeda de lá.” Depois de sair da cadeia, ele parou de beber e conseguiu que a esposa retirasse a medida protetiva. “Hoje não bebo mais nada. Quando tem churrasco na casa dos meus tios, todo mundo já compra cerveja sem álcool pra mim. Não quero voltar ali nunca mais. Não é vida pra ser humano não. É fome, frio. Nunca mais. Falei pra juíza que ela nunca mais ia me ver lá”, diz.
As histórias que terminam em cadeia chocam os que não passaram por isso, aqueles que ainda aguardam audiência. Eles falam o tempo todo o quanto poderia haver um espaço como esse, de reflexões, mas de maneira preventiva, para evitar que fizessem o que os levou até ali.
Eu penso o quanto a roda no bar, o futebol, os espaços tidos como “masculinos” não poderiam servir no dia a dia para a desconstrução dessa masculinidade tóxica. E o quanto os homens poderiam ser mais felizes se dentro deles não vivesse esse macho da era da pedra lascada.
Fonte: Brasil Post